COLUNISTAS, ESPECIAL, POLÍTICACONCLUSÃO – Série Presídios: A educação é a arma mais poderosa que se pode usar para mudar o mundo – por Siro Darlan e Anita Alvarenga MAZOLA, 20 horas ago 0 11 min read
Por Siro Darlan e Anita Alvarenga –
Série Presídios XXXVII.
CONCLUSÃO.
Em 1982 foi realizado em Brasília o I Congresso Brasileiro de Política Criminal e penitenciária. Na ocasião o respeitado criminalista e professor Renê Ariel Dotti assim se manifestou; “Em todo o curso da execução, em ambiente fechado, em meio livre ou nas suas formas intermediárias, se modela o verdadeiro rosto do Direito Penal, integrado ou alienado no quadro geral dos interesses comunitários e das garantias e direitos individuais. A avocação das bases indispensáveis a um sistema que cumpra as exigências próprias a um Estado social e democrático de toda armadura jurídica, social e humana das ciências penais seria corroída pelas forças do arbítrio e das graves incertezas. A proscrição das penas cruéis, infamantes, a proteção formal e material dos sujeitos que atuam na relação processual, a adoção do princípio da legalidade em toda a sua inteireza, despontam como coordenadas fundamentais para estruturar um Direito próprio à execução das penas e das medidas de segurança”.
O Mestre Renê não imaginava que nossa civilização andasse para trás e atingíssemos o número de 900 mil presos no Brasil, não podia crer que as penas cruéis e infamantes se tornassem uma regra no sistema penitenciário, terceiro maior encarcerador do mundo. Não creria que para esconder esse “estado de coisa inconstitucional” e humilhante, o próprio Conselho nacional de Justiça baixasse uma norma proibindo magistrado de visitarem os presídios, para evitar a publicidade do caos. Não imaginava que seriam ainda criados os modelos mais cruéis e desumanos de presídios na esfera federal isolando o homem da sociedade, da família, da religião, do afeto, da saúde, transformando-os em seres adoecidos e torturados pelo Estado cruel e autoritário.
A Tribuna de Imprensa Livre promoveu essa série para dar voz aos cárceres. Do fundo das profundezas da violência humana eles tiveram voz e deram seus depoimentos. Puderam ser ouvidos e lidos. Não chegaram a sensibilizar os administradores, os juízes, os promotores que continuam alimentando essa máquina de moer gente promovendo-lhes dor e sofrimento.
No mesmo Simpósio de 1982, o então Juiz da Vara de Execução Penal, até hoje insuperável do alto de seus 89 anos dirigindo a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, o Provedor Francisco Horta, afirmava que “Prisão não cura, corrompe. O pior entretanto, é que a decadência dos presídios atinge tanto os presidiários quanto os seus carcereiros. Há im índice de degradação humana a partir do qual não sobram nem resquícios de virtude ou de honradez. O que se conhece de certos terapeutas que desempenham as atribuições carcerárias é tão ou mais grave do que ocorre atrás das grades, pois, uma autoridade desmoralizada e desmoralizadora provoca mais danos do que bandos inteiros de criminosos”.
Tentamos ouvir a administração penitenciária e os guardas penitenciários, mas se recusaram a dar sua versão dessa crueldade. Portanto, vamos concluir essa série com a única solução possível. Por isso esse último texto foi escrito pela Diretora do Colégio Estadual Mário Quintana, no interior da Penitenciária Lemos de Brito, em Gericinó, Rio de Janeiro, que é uma ilha de dignidade nesse sistema que está se afogando no Inferno de Dante. Leiamos o que escreveu a Professora Anita Alvarenga.
“A educação é a arma mais poderosa que se pode usar para mudar o mundo” (MANDELA, Nelson. Autobiografia: “O longo caminho para a liberdade”). Totalmente verdadeira essa sentença, já que Nelson Mandela teve a experiência da privação da liberdade. Mesmo levando em consideração os contextos que o levaram à prisão, a frase continua a ser atemporal, verdadeira e usual. Esse pensamento de Mandela se adequa às mais variadas situações do nosso cotidiano: o sentimento de ódio é tudo aquilo que vemos como política de Estado. Esse Estado que abandona o indivíduo a própria sorte e, consequentemente, fomenta o sentimento de ódio. A questão de a massa carcerária ser, na sua totalidade, de pobres é o reflexo da falta de uma política adequada, humana e democrática. Vivemos numa sociedade do dinheiro pelo dinheiro, e não o dinheiro a favor de uma sociedade como um todo, o que ocorre é: dinheiro dos impostos de todos para poucos. Podemos observar, por exemplo, a discrepância geográfica na formação de comunidades imensas com milhões de pessoas que sofrem diariamente a ausência deste Estado, de políticas públicas sociais efetivas e cidadãs, não estas que são com intuitos eleitoreiros que recomeçam sempre com a eleição de um novo gestor.
Como ensinar um indivíduo, em situação de vulnerabilidade, que ele seja um transformador como Mandela fala? Fica sempre aquela sensação de “enxugar gelo”, desfazer toda uma história de abandono Estatal. A Escola proporciona conhecimentos cognitivos com suas variadas disciplinas, se fala muito na Escola, mas o mais importante não é falar e sim o que se vive, viver a realidade educacional faz toda a diferença na formação do indivíduo. O Colégio Estadual Mario Quintana existe desde 1967; são cinquenta e seis anos de existência e é a minoria da sociedade que sabe que existe educação formal dedicada a trazer esperança ao apenado. A Escola trabalha dentro do cárcere a questão da higiene pessoal, a questão da alimentação adequada, a solidariedade e a empatia, mas todo esse discurso fica impossível, obviamente, quando nos posicionamos do outro lado da grade. Temos um Colégio dentro do cárcere, isto é uma experiência muito enriquecedora. O ideal seria que tivéssemos um colégio em cada um dos presídios, porque a educação é a base para a transformação de qualquer indivíduo. Porém, a Escola, por si só, não tem como fazer tudo, já que há a ausência de importantes elementos para uma verdadeira transformação. Isso faz com que o nosso trabalho seja redobrado, e muitas das vezes, os nossos objetivos não são alcançados. O nosso aluno sai de um ambiente claro, limpo e acolhedor e volta para um ambiente insalubre, superlotado que fere a sua dignidade profundamente. Como reparar esse dano? Penso que o Colégio dentro do presídio, que vai da alfabetização ao Ensino Médio, é uma proposta que deveria ser melhor aproveitada. Se não fosse por uma sociedade preconceituosa, que vê na verba da educação para detentos uma verba “jogada fora” visto que ela deveria ser aproveitada para as crianças, para os adolescentes. Essa reflexão feita é, sem dúvida, induzida pelas mídias, e é rasa. Não se aprofunda em que busquem saber a razão pela qual a educação no presídio é de fundamental importância, já que esta foi negada ao indivíduo lá no começo. Foi deficiente e insuficiente desde sempre. Este indivíduo não foi estimulado a permanecer na escola por inúmeros fatores sociais. Eu sou a favor dos Colégios de horário integral, como os que Darcy Ribeiro pensou. As Escolas tinham como objetivo acolher a criança e o adolescente, proporcionando pela educação o apoio na formação do indivíduo, dando aos pais a segurança para trabalharem, enquanto seus filhos estão na Escola sendo alimentados fisicamente e cognitivamente com mais tranquilidade; a Escola era pensada para propor oficinas, reforço escolar, arte e cultura – a nossa sociedade precisa disso. A população pobre teve, realmente, na época com Darcy Ribeiro esta foi uma realidade, essa educação que nós precisamos para que os presídios parem de ser o depósito humano, que eles tratem o apenado como seres humanos que são, com suas competências e qualidades, proporcionando oportunidades para a real transformação do indivíduo. O que observamos é que são tratados como a escória da sociedade, que em sua maioria são o fruto da árvore do abandono Estatal e de uma sociedade cruel.
Temos uma sociedade pobre de conhecimento, de educação, de autoestima, de dignidade, que são princípios básicos de uma sociedade forte e saudável, mas a sociedade é cruel, se é cruel está colhendo o que plantou, não é só de política pública, mas também. É a essência da nossa sociedade como um todo que está doente, as suas falhas são inúmeras, ela é corruptível, a cultura do “jeitinho à Brasileira”, todas as questões que fragilizam o ser-cidadão estamos colhendo hoje, com o aumento exorbitante da marginalidade, inclusive, deixe eu ressalvar, a marginalidade nos poderes públicos, que não se preocupa com o estado da sociedade que o sustenta, se preocupam exclusivamente consigo mesmos; quanto mais dinheiro, quanto mais poder melhor.
Só reverteremos toda essa situação pelo amor, pelo respeito ao ser humano enquanto humano, tentando lembrar o tratamento diferenciado que o Colégio Estadual Mario Quintana, localizado no Presídio Lemos Brito no complexo de Gericinó, que dá ao interno a dignidade de chamá-lo pelo nome, estimulando o melhor dele, mostrando óticas diferenciadas do mundo que o rodeia, para que o mesmo tenha a liberdade de escolha, o que às vezes ele não teve anteriormente, induzido por todo um contexto a um caminho sem escolha. O papel do Educador dentro de uma Escola Prisional é resgatar, inserir, valorizar. E o maior salário está quando em liberdade, recebo as notícias de que aquele que um dia sentou numa cadeira em sala de aula de um colégio prisional conseguiu, de alguma forma, ser um ser humano melhor.
“Nunca considerei nenhum homem superior a mim, nem dentro, nem fora da prisão”. (carta de Nelson Mandela ao general Du Preez, administrador das prisões, escrita da prisão Robben Island, na Cidade do Cabo, 12 de julho de 1976).
O cárcere é barbárie, vingativo e despreocupado com a real experiência das pessoas, instrumento da antiga retórica do castigo. Continuar a sustentar o sistema carcerário caro, inútil e cruel significa, autorizar a prática da vingança de Estado, com todos seus agentes torturadores, do policial que prende, passando pelo ministério público que não fiscaliza os atos ilegais e homologa essa violência. Até o juiz que condena com venda nos olhos para não ver a violência que esse sistema representa com a imposição de dor e sofrimento aos encarcerados. Não há qualquer motivo para acreditar que o espectro da prisão reduzirá a criminalidade, sendo, assim, absurdo retardar a busca de solução.
* Colaboração da professora Anita Alvarenga, diretora da Escola Estadual Mario Quintana.
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SIRO DARLAN – Advogado e Jornalista; Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Ex-juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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