A tragédia de Ésquilo e o judiciário brasileiro.

Siro Darlan, juiz do segundo grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mestre em Direitos Humanos e Saúde Pública, Conselheiro da ABI e do Conselho Editorial da Tribuna de Imprensa Livre.

“A força da necessidade é irresistível”.

         Há 2.479 anos era inaugurada a forma moderna de se fazer justiça na Grécia através de uma obra de arte, uma tragédia atribuída ao filósofo Ésquilo. O último ato da famosa tetralogia, vencendo o concurso em Atenas, Orestia nos apresenta uma proposta de justiça, até então assentada na justiça privada com a máxima do “olho por olho, dente por dente”, que por sua vez já fora uma proposta civilizatória, eis que anteriormente essa vingança não tinha limites. Além de Eumênides, Ésquilo nos ofertou outras duas tragédias conhecidas, Agamêmnon e As Coéforas, e a desconhecida Proteu, que não chegou até nossos dias.

“Escute só a maioria e escutará apenas uma parte”.

         Diante da realidade que estamos testemunhando atualmente, a implantação da justiça pública com juízes e tribunais, após essa experiência secular de um casamento entre a sensibilidade das artes e a literalidade das leis, estaríamos renegando esse regalo civilizatório?        Aos gregos, com as tragédias, se atribui a iniciativa de desligar o passado e permitir a marcha do tempo para a frente. Literariamente, Eumênides, que compõe a trilogia Oresteia, de Ésquilo, representa a invenção da justiça e do próprio direito: institucionalizou-se pela primeira vez um tribunal para julgar crimes de sangue com base num discurso racional, pondo fim ao sistema vindicativo conhecido como a maldição dos Atridas.

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         Seria correto afirmar que o longínquo julgamento de Orestes ainda é representativo do fim do ciclo de vingança ou os sistemas contemporâneos de direito continuam refletindo aqueles primitivos sistemas, como se as três gotas de sangue de Urano, que deram origem às Erínias, ainda tingissem a terra impedindo que o passado passe? O objetivo deste artigo, sem deixar de reconhecer a contribuição dos helenos, é demonstrar que, no plano da realidade, a conversão das Erínias em Eumênides não completou seu ciclo: há um passado que não se desliga e as memórias longas das deusas vingadoras ainda clamam por vingança, interditada, por certo, com o julgamento de Orestes, mas difícil é negar que o Estado, ao punir, numa dada perspectiva, não continue a reproduzir sentimentos e práticas de vingança, a recordar a maldição dos Atridas.

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         Os últimos acontecimentos da Republica de Curitiba e do Condado de Resende apostam que esse ciclo ainda não se cumpriu e as Erínias permanecem rondando os Tribunais e os gabinetes dos juízes, mas instalados como uma ala de representantes do ministério público nas figuras de Delagnol, Marfan, Fernando, Mothé e outros menos insignificantes nesse papel na tragédia. Enquanto em Delfos, o deus Apolo, adormece os ferozes perseguidores, seja de Orestes, seja de Lula, ou de Siro, as Erínias não sossegam em suas artimanhas persecutórias de promoverem conduções coercitivas, escutas ilegais, buscas e apreensões sem causa, prisões para coação e delações forjadas.

         A deusa Atenas, finalmente propõe que Orestes seja julgado por um tribunal, juízes imparciais escolhido entre os cidadão atenienses. Durante o julgamento, as Erínias não param de fazer acusações, desejam a vingança ardorosamente, e o julgamento dá empatado, possibilitando que a deusa Atenas decida a favor da absolvição de Orestes, criando nesse momento o que hoje chamamos de voto de Minerva (nome da deusa para os romanos). No entanto, como Aécio Neves, as Erínias não se conformam e continuam revoltadas porque não desejam justiça e sim vingança. A deusa Atena propõe que as Erínias abandonem suas antigas prerrogativas e se tornem Eumênides, ou seja “benfazejas”, momento em que o ministério público volta às suas origens de promotoria de justiça e não de vingança.

         Eumênides, que compõe a trilogia Oresteia, de Ésquilo, representa a invenção da justiça e do próprio direito: institucionalizou-se pela primeira vez um tribunal para julgar crimes de sangue com base num discurso racional, pondo fim ao sistema vindicativo conhecido como a maldição dos Atridas. Seria correto afirmar que o longínquo julgamento de Orestes ainda é representativo do fim do ciclo de vingança ou os sistemas contemporâneos de direito continuam refletindo aqueles primitivos sistemas, como se as três gotas de sangue de Urano, que deram origem às Erínias, ainda tingissem a terra impedindo que o passado passe?

         Seria correto as Erínias modernas aparelharem um delegado federal com equipamento do estado para coagir um delator a gravar e dedurar seus amigos, inclusive sua advogada, com o objetivo de reduzir sua pesada pena e incluir na delação um tradicional adversário da Erínias, que não se dobra às suas investidas de ódio e de raiva? Não seria esse ato de abuso de poder um desvirtuamento do papel constitucional do Ministério Público e a privatização dos interesses que deveriam ser republicanos?

         Passados mais de dois mil anos, seria correto dizer que o julgamento de Orestes é, de fato, representativo do fim do ciclo de vingança como forma de justiça ou será que os sistemas contemporâneos de direito, com seus processos civilizados de punição, ainda refletem os primitivos sistemas vingativos, numa palavra: as três gotas de sangue – as mães fundadoras – de Urano derramadas que deram origem às Erínias, as deusas vingadoras, ainda estão presente em nosso ordenamento jurídico, sobretudo numa parte significativa do ministério público e da magistratura, e, por conta disso, e temos o terceiro campo de encarceramento do planeta?


“A verdade é a primeira vítima da guerra”.

         Teoricamente, a tragédia dos Atridas é contada por Ésquilo, dramaturgo grego do século V a. C, em Oresteia, composta por três peças: Agamenon, Coéforas e Eumênides, com destaque para a última, que deve representar o fim do sistema vingativo de realização de justiça, ao se instituir, sobre a presidência de Palas Atena, a deusa grega, o primeiro tribunal da história que, ao julgar Orestes pelo assassinato de Clitemnestra, sua mãe, repele o desejo de vingança e lança mão de critérios racionais para punir os crimes de sangue. Por que razão em pleno século XXI, o ódio, o medo e a vingança ciclicamente voltam a ocupar as cadeiras dos tribunais?

“É uma grande felicidade ver nossos filhos ao redor de nós, mas dessa boa sorte nascem as maiores amarguras do homem”.

         A obra dos dramatúrgicos gregos legou à humanidade a conquista da civilização, um desenvolvimento extraordinário que resultou na incorporação de valores como a democracia, a análise de culpa, o julgamento com oportunidade de defesa, a busca pela justiça. Os gregos nos deram os cromossomos da civilização ocidental. Nós, contemporâneos, recebemos esse legado extraordinário, alicerce na construção do ordenamento jurídico. Prometeu acorrentado é uma franca denúncia à tirania. O julgamento de Orestes é representativo, pelo menos figurativamente, da passagem da justiça privada para a pública, dia. Todavia, o que não se pode ignorar são os bafejos do ranço da vingança, cujo sopro chega a nossos dias. É como se as deusas vingadoras nunca tivessem se convertido nas deusas benevolentes e permanecessem presas ao dever de clamar por vingança. Os últimos acontecimentos no judiciário brasileiro tem descoberto que as Erínias estão presente como fantasmas que sobrevivem aos séculos e se faz presente em algumas instituições.

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Finalmente é de se concluir que além da filosofia, da política, da democracia e do lúdico, os gregos nos legaram a invenção do direito, muito embora tal realidade, no mais das vezes, tenha sido encoberta pela força da nossa formação romano-canônica, o que não apaga o fato de que foi o espírito heleno que concebeu tanto a institucionalização do tribunal quanto a adoção de critérios racionais que pusessem fim ao sistema vingativo da justiça privada. Surgiu então dessa inteligência mitológica dos gregos os modernos sistemas de administração de conflitos, conflito em matéria de persecução penal, a realização do direito, com a diferença que esse sistema foi criado pela mitologia e a arte cênica, ou seja o direito é filha da arte.

A adoção do julgamento racional, de modo a desvincular o sentimento de vingança da ideia de justiça, embora, como demonstrado, a passagem da justiça privada para a justiça pública – simbolicamente representada pela conversão das Erínias em Eumênides não completou seu ciclo, e por isso ainda encontramos em muitos tribunais a justiça sendo utilizada para oprimir  e perseguir inimigos, ainda vemos que o law fare é utilizado como arma política e não como instrumento para, solucionando os conflitos, fazer reinar a Paz.