ADOÇÃO SEM PRECONCEITO.

Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da Associação de Juízes para a democracia.

 

Keila tinha sete anos e vivia nas ruas de Botafogo. Havia se perdido do pai que nunca foi encontrado e sua mãe havia morrido. Negra e com mais de sete anos sofria rejeição dos adotantes ainda preocupados em adotar crianças recém-nascidas, brancas e sem qualquer deficiência. Nenhuma família brasileira queria adota-la, após passar um período no abrigo. Eis que surge um casal de italianos que a elegem como filha e após os trâmites legais a integram à família.

Hoje Keila é doutora em Padova, na Itália, e constituiu uma bela família, tem uma filha linda após um feliz casamento. Ao visita-la dizia com muito orgulho que tinha o mesmo tipo sanguíneo de sua mãe italiana, branca de olhos azuis. Keila é uma das muitas crianças que tiveram uma segunda chance e apesar do trauma do abandono, é feliz.

Vejo com preocupação que um grupo de pessoas respeitáveis colocou na pauta de debates: Escurecer e repensar as ações de adoções de crianças negras por pessoas brancas. Com todo respeito à realidade inquestionável da existência em nossa cultura de uma forte predisposição para o preconceito racial. Contudo a preocupação racial não pode ser pautada quando as relações são afetivas e a adoção é um parto afetivo para o qual todos os juízes que militam na infância e juventude labutam para combater.

É uma realidade que a grande maioria das crianças abandonadas, seja em razão das injustiças sociais, raciais e da violência que assola as comunidades mais pobres é de negros e pobres, sendo 92% deles entre 7 e 17 anos. Ao pautar esse tema como um problema racial, essas pessoas tão acirrando o preconceito e isso pode prejudicar e impedir que muitas crianças venham a ser adotadas por motivação racial.

Essa questão envolvendo o abandono e maus tratos de crianças e adolescentes é de tamanha gravidade e crueldade que não cabe aqui pautar qualquer forma de preconceito seja com as crianças ou com os adotantes. O que se deve fazer é unir esforços para retirar do cativeiro do preconceito e do abandono todas as crianças, independente de sua cor de pele ou origem social. Todas têm o direito a uma família e a convivência comunitária.

Assim como Keila, muitas crianças foram libertadas do cativeiro que se constituem as entidades de acolhimento para viver no seio de uma família, seja brasileira ou estrangeira. Há ainda um forte preconceito contra a adoção internacional, cercada de fakes espalhadas para impedir essa forma de adoção. Alguns inventam que as crianças sofrerão abusos sexuais, outros que são utilizadas para a retirada de órgãos, etc.. Fatos que não podem ser negados como possíveis, mas que infelizmente pode ocorrer lá como aqui. Mas enquanto tivermos que fazer um juízo de valor apenas em notícias descabidas e convicções pessoais, estaremos impedindo muitas crianças de serem felizes com uma segunda chance.