Cartas a Rafael. 10 de agosto 2022
Caríssimo irmão.
Precisamos de você. Esteja alerta e em oração porque nosso Leozinho, esse leão humano que tem resistido a tantas intempéries, está em perigo. Segundo os médicos ele precisa usar sonda e vai precisar fazer uma citostomia, e como é uma intervenção cirúrgica vamos precisar de sua assistência. Cuide disso e proteja nosso Leozinho.
Por aqui esse Brasil está em chamas. Amanhã será festejado o Dia dos Advogados e em todo o país haverão manifestações cívicas pelo respeito ao estado democrático de direito. Espero que tudo corra em paz já que estamos há três meses de importantes eleições onde o importante será o respeito à vontade popular. Não se compreende que em pleno estado civilizatório um presidente eleito há várias décadas por esse sistema de urnas eletrônicas venha a colocar em dúvida o próprio método pelo qual foi eleito em várias ocasiões e venha a amaçar não respeitar o resultado das urnas. Mas para quem acredita que a “terra não é redonda” e usa a palavra de Deus para distribuir armas e ofensas, não há outra coisa a se esperar.
Mas como sei que você não gosta desse tema, vamos falar de amenidades. Cajazeiras está tendo um grande desenvolvimento e fico feliz de ver, ainda que de longe, a Cidade “que ensinou a paraíba a ler” está ensinando agora o desenvolvimento do sertão e o respeito ás minorias. Tenho muita vontade, mas pouco tempo para visitar mais amiúde minha terra e meus irmãos.
No próximo dia 23 de agosto estarei em Brasília defendendo mais uma tese de Especialização na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados. Minha tese trata do “Racismo estrutural como causa do super encarceramento”. É uma vergonha que a escravidão tenha sido abolida e continuemos tratando como cidadãos de menor categoria social os irmãos negros e negras. O perfil dos juízes brasileiros é de brancos, ricos e conservadores e isso faz com que concluamos que os colonizadores brancos continuam tratando os afrodescendentes como escravos. Temos que combater o racismo, até porque nós nordestinos também somos vítimas desse preconceito em outras artes do Brasil.
Tenho pensado muito em tirar uns dez dias para ir matar as saudades dos irmãos, sobrinhos e demais parentes. Gosto muito desse chamego dos holandas. Beijos desse irmão que te ama.
Resposta do Rafael:
Minha Fezinha
Durante os meus trinta anos de médico posso ter perdido a minha dignidade em certos momentos, porém, em nenhum momento perdi a minha fé.
Muitos acreditam que médicos vivem sob o signo do concreto e envolto em materialismo, mas, na verdade apesar do alto índice de suicídio na nossa classe, e em muitas das vezes por frustrações, na sua maioria leva consigo o sagrado dever de crença em algo maior que nos fortifica, e que nos permite aceitar muitas das cruzes que passam pelo nosso caminho.
Eu tenho fé, porém esta não é tão grande como a de muitos amigos evangélicos ou católicos; a minha fé aumentou no misto de alegria e dor.
Em 1983 após visitar um amigo, cuja esposa tinha tido uma criança portadora da Síndrome de Down, eu disse para a minha mulher uma das coisas mais aberrante da minha vida: se fosse meu filho não sairia do berçário. Naquele momento a minha alma estava longe do caminho de Deus, era eu um pobre e desprezível pecador e não merecia as chuvas de benções, e sim provações próprias da minha afirmação maluca.
Em 1985 a minha mulher engravidou e por cinco meses perdia um pouco de sangue, em muita das vezes partíamos para o hospital na certeza de uma curetagem, porém sempre havia uma ultrasografia prévia e lá estava um coração pulsante.
Ao término do nono mês, preparei a minha máquina para filmar o filho esperado visto que os dois primeiros eram meninas.
Durante o parto quando a cabeça do jovem ansiosamente esperado saiu do canal vaginal, através do orifício da máquina pude confirmar pela fácies que eram um portador da Síndrome de Down, então lembrei que alguém havia escrito as minhas palavras há dois anos.
A sua imagem inicial, rachou o meu solo, escureceu o meu dia, e transformou a minha noite em pesadelo, quis fugir buscar razões que não encontraria e sem motivos para odiar eu o odiei.
Durante todo dia no hospital passei arquitetando uma maneira de trocar meu filho por outro visto contarmos com oito gestantes, e, por incrível que pareça nasceram oito meninas.
Neste momento eu acreditava que havia rompido com minha fé e ela mais uma vez tinha que ser provada.
Estas provações estavam estampadas nas minhas lágrimas de ódio e desaprovação ao veredicto de Deus que deformava e destorcia o meu EU.
Durante um ano coloquei o zero a esquerda do meu filho, e passei a desconhecê-lo esperando, que alguma patologia inerente ao seu caso viesse a levá-lo.
Ao completar um ano minha mulher pediu que eu viesse mais cedo para que pudéssemos juntos apagar sua primeira velinha.
Ao chegar à casa contrariado, resolvi passar pelo quarto do jovem que durante todo este ano tornou-me escravo da descrença, ele estava de brusco e acordado ao me ver levantou sua cabeça e disse: papá.
Naquele momento senti que todo meu sofrimento tinha terminado que meu orgulho caia por terra e que eu nascia de novo.
Então eu disse: senhor, eu sei que tu me sondas, sabe que também me conheces se ando ou sento, tu conheces meus pensamentos, sabes os meus passos e ainda que haja em mim palavras, sei que em tudo me conheces.
Vi que este filho que agora eu recebia de coração era o maior sinônimo vivo de fé que eu recusava e desconhecia.
Sei meu filho que serás o meu companheiro de velhice, faço questão de mostrar-te em todos os lugares enquanto muitos escondem os seus.
Sei meu filho e com mais profundo respeito te peço perdão, pois muitos perdem os seus em plena juventude, muitos perdem os seus para as drogas e muitos perdem os seus por doenças sei que o que fiz não é digno de perdão, sei que o que fiz foi por ignorância, por cegueira, e por não saber interpretar as virtudes de Deus.
Passei a batalhar pela fé, passei a lutar pela fé, busco a cada momento aumentar a minha fé, porém mais uma vez respondo: eu tenho uma Fezinha.