Comentários Críticos aos Enunciados FONAJUC/2018
Alexandre Morais da Rosa
Ana Carolina Bartolamei Ramos
Ana Cristina Borba Alves
Andréa Ferreira Bispo
Cristiana de Faria Cordeiro
João Marcos Buch
Marcos A. R. Peixoto
Rosivaldo Toscano Jr.
Rubens R. R. Casara
Simone Dalila Nacif Lopes
Os autores são todos magistrados da
Associação Juízes para a Democracia
Desde 2017 vem ocorrendo anualmente o Fórum Nacional de Juízes
Criminais (FONAJUC) que, neste ano de 2018, como naquele primeiro ano, trouxe
à baila vários enunciados.
Em 2018 – tal qual em 2017 – temos, quanto aos enunciados, de pronto
duas constatações, uma má e outra boa. A má são os enunciados como um todo,
que à par de suas absolutas inutilidades denotam ter a maioria dos juízes
criminais que estava no encontro cedido aos apelos do populismo penal, do direito
penal simbólico, do direito penal do espetáculo e do punitivismo exacerbado,
abandonando a defesa da Constituição por uma luta estranha aos superiores
objetivos do Poder Judiciário. A boa constatação é que, também lá, houve
resistência, pois a maioria dos enunciados extraídos do Fórum foi aprovada por
maioria de votos.
Este artigo, assim, vem reforçar aquela resistência interna ao trazer
uma resistência externa, crítica e constitucional à onda punitivista que assola o
país com drásticas consequências (sendo o hiperencarceramento a maior delas),
atormenta a Justiça Criminal e afogou o FONAJUC.
Passemos, pois, sem mais delongas, aos Enunciados e suas análises
por membros da Associação Juízes para a Democracia.
ENUNCIADO 28 – A não realização de audiências de custódia não acarreta
nulidade da prisão em flagrante convertida em preventiva.– Aprovado por
maioria
O objetivo da audiência de custódia é garantir que, em até 24 horas, o
preso seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência com a
participação do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do
preso. O objetivo da referida audiência é a análise da prisão sob o aspecto da
legalidade, da necessidade e adequação da continuidade da prisão ou da eventual
concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares,
além de eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras
irregularidades.
A implementação das audiências de custódia está prevista em pactos e
tratados internacionais assinados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos,
conhecida como Pacto de San Jose da Costa. Tais normas internacionais estão
incorporadas em nosso ordenamento jurídico desde o ano de 1992.
Vejamos o que nos impõe, como norma supralegal, o art. 7º., 5, do
Pacto de São Jose da Costa Rica ou a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos:
“Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora,
à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções
judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em
liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser
condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.”
Igualmente, o art. 9º., 3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos de Nova Yorque:
“Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal
deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade
habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em
prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que
aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá
estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em
questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a
execução da sentença.”
E a respeito da hierarquia ocupada pelos tratados e convenções
internacionais no nosso ordenamento jurídico, jurista do peso de Valerio de
Oliveira Mazzuoli defende que eles têm caráter de norma constitucional,
independentemente de quaisquer quórum para sua aprovação. Ou, ainda, na pior
das hipóteses, o STF, em recentes julgados deram a elas a categoria de normas
supralegais, ou seja, estariam abaixo da Constituição e acima da legislação
ordinária, o que em outras palavras quer dizer que integram o nosso ordenamento
jurídico, e se estão acima da Legislação Ordinária, desnecessário falar que muito
acima de um Enunciado!!!
Assim, tal enunciado não pode prosperar, pois carrega consigo
flagrante ilegalidade, ou seja, contraria normativas supralegais que integram o
ordenamento jurídico brasileiro, há muito já vigentes.
ENUNCIADO 29 – A audiência de custódia poderá concentrar os atos de
oferecimento e recebimento da denúncia, citação, resposta à acusação,
suspensão condicional do processo einstrução e julgamento. – Aprovado
por maioria
Querem transformar a audiência de custódia num mini Júri – sem
primeira fase! É a desenfreada busca por uma certa “efetividade” da jurisdição
criminal elevada à enésima potência, o paroxismo da frase famosa de Rui Barbosa
segundo a qual “a justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e
manifesta”, isto quando um Judiciário célere em demasia, descuidado numa certa
pressa em atender de forma espetacular a anseios punitivistas da turba de plantão
tampouco é justiça!
O processo penal e o procedimento criminal não são enfeites à
disposição do magistrado, como se em cada sala de audiências pudesse existir
um Código de Processo particular que está na cabeça do juiz e de mais ninguém
(e, quem advogou, sabe que eles existem…).
A estrita observância aos ditames processuais e procedimentais
decorre de exigência constitucional, i.e., da cláusula due process of law, e
perpassa pelo princípio da divisão de poderes, cabendo ao Congresso Nacional a
elaboração das leis processuais, cuja inobservância importará em nulidades as
mais variadas e independentemente da “demonstração de prejuízo” já que este
advirá da violação a garantias fundamentais do cidadão.
Dirão alguns: “mas as audiências de custódia não foram ainda
regulamentadas, logo, podemos dela fazer o que quisermos”. Por óbvio, não é
verdade.
Primeiramente porque “fazer das audiências de custódia o que
quisermos” seria fazer letra morta, de forma indireta, aos procedimentos
regulamentados pelo Código de Processo Penal em suas fases escalonadas,
pensadas não à toa mas para conferir efetividade aos princípios da ampla defesa
e do contraditório, também de natureza constitucional.
Em segundo lugar: há, sim, regulamentação a respeito e tal se encontra
(sem que seja necessário mencionar em detalhes a controvertida Resolução 213
do Conselho Nacional de Justiça, que em várias passagens parece invadir
atribuição legislativa do Congresso Nacional) justamente no artigo 9º, item 3, do
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, bem como no
artigo 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São
José da Costa Rica), os quais delimitam o objetivo das audiências de custódia à
apresentação, sem demora, de toda pessoa presa, detida ou retida à presença de
um juiz de modo a que seja o quanto antes analisada a prisão (e tão-só – como se
fosse pouco…).
Por último mas não menos importante, tal ideal contido neste enunciado
do FONAJUC violaria de forma incisiva e frontal também o princípio constitucional
do juiz natural, subtraindo sem respaldo em lei à competência dos juízes criminais
das varas comuns ou especializadas o regular processamento e julgamento de
causas que lhes são afetas.
Portanto e em suma, a concentração de atos processuais preconizada
pelo enunciado aqui analisado seria medida espúria, ilegal, inconvencional e
inconstitucional, a importar em nulidade a todos os atos praticados e, aí sim,
graves prejuízos à adequada e razoável efetividade e celeridade da jurisdição.
ENUNCIADO 30 – É prescindível a realização de audiência de custódia em
casos de cumprimento de mandados de prisão. – Aprovado por maioria
Um direito fundamental deve receber do aplicador da lei interpretação
que lhe confira a máxima efetividade, não o extremo reducionismo. Não poderia
ser diferente com as audiências de custódia, acolhidas pelo Brasil após aderir a
convenções internacionais de Direitos Humanos, atualmente em fase de tardia
implantação inclusive por imposição do Conselho Nacional de Justiça, muito
embora diversos magistrados, sobretudo integrantes da Associação Juízes para a
Democracia, já implementassem o ditame convencional mesmo muito antes da
preocupação hoje externada quanto ao instituto.
Pois bem: pela simples dicção do artigo 7.5 da Convenção Americana
de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) temos que “toda pessoa
presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou
outra autoridade por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada
em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o
processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu
comparecimento em juízo”.
Daí percebe-se com absoluta nitidez que as audiências de custódia
destinam-se a “toda pessoa presa, detida ou retida”, sem distinção da fonte da
custódia, seja ela por força de prisão flagrancial ou pelo cumprimento de mandado
prisional.
Não por outra razão o Conselho Nacional de Justiça, ao regulamentar
as audiências de custódia através de sua Resolução 213, explicitou (neste ponto
sem quaisquer máculas por alguns apontadas em efetivas invasões à esfera de
competência legislativa exclusiva da União) em seu artigo 13 que “a apresentação
à autoridade judicial no prazo de 24 horas também será assegurada às pessoas
presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou
definitiva, aplicando-se, no que couber, os procedimentos previstos nesta
Resolução”.
Isto dispõe de uma razão de ser: se as audiências de custódia visam de
um lado coibir e de outro apurar, com a indispensável presteza, o cometimento de
atos atentatórios à direitos fundamentais no momento da prisão, tal pode se dar
não só quando da execução de prisões flagranciais mas igualmente quando do
cumprimento de mandados prisionais. Logo, deferindo uma custódia cautelar, seja
preventiva ou temporária (ou mesmo de natureza alimentar, vinculada ao Direito
de Família), assim que o Juízo competente tomar contato com a informação de
execução da ordem prisional, deverá designar a competente audiência de custódia
para, na presença do Ministério Público, apreciar a prisão.
Somente assim se estará a conferir ampla e cabal efetividade a este
instituto que, longe de contribuir para uma tal “impunidade” (como alucinadamente
querem alguns), colabora para incluir nosso país no rol daqueles que efetivam e
respeitam os Direitos Humanos enquanto evolução civilizatória em tudo
condizente com o projeto constitucional encampado desde 1988, ainda que
atualmente sob o flagrante e diuturno bombardeio de setores obscurantistas da
sociedade.
ENUNCIADO 31 – É aplicável no processo penal, por analogia, o previsto nos
artigos 77 e 79 e seguintes do CPC, que preveem punição por ato atentatório
à dignidade da justiça e ou litigância de má-fé. – Aprovado por maioria
A aplicação analógica carece de sustentação sistemática e viola a
paridade de armas. Isso porque os artigos 77-79, do NCPC, conforme
amplamente trabalhada pela doutrina, talvez desconhecida pelos “enunciantes”,
objetiva a manutenção do fair play e do comportamento processual adequado a
partir de premissas disponíveis. Desconsidera o fato objetivo de que o próprio
texto, ao excluir os advogados, membros do Ministério Público e Defensoria
Pública da incidência das sanções (NCPC, art. 77, § 6o Aos advogados públicos
ou privados e aos membros da Defensoria Pública e do Ministério Público não se
aplica o disposto nos §§ 2o a 5o, devendo eventual responsabilidade disciplinar
ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz
oficiará), direciona as baterias para punir prioritariamente ao acusado que, por
básico, não precisa produzir nenhuma prova e tem o direito de mentir. Assim, a
aplicação dita analógica pretende incrementar o espectro punitivista do acusado
em face do exercício regular de direito. Ademais, na condução do processo o
magistrado pode determinar a ordem processual, tendo-se, ademais, disposições
expressas no contexto do CPP para os violadores da boa-fé processual (CPP, art.
265, 791 e seguintes). A extensão pretendida é despropositada e busca manipular
a ampla defesa.
ENUNCIADO 32 – Havendo registro de ato infracional praticado pelo réu, a
redução prevista no artigo 33 § 4º, da Lei 11.343/06 poderá ser afastada. –
Aprovado por maioria
ENUNCIADO 33 – Os atos infracionais poderão ser valorizados na fixação da
pena-base, quando das circunstâncias judiciais. (art. 59 CP) – Aprovado por
maioria
ENUNCIADO 34 – Os atos infracionais poderão ser valorados na apreciação
da necessidade de prisão provisória. –Aprovado por unanimidade
Os três enunciados denotam uma fixação dos integrantes do FONAJUC
em computar as passagens de um indivíduo anteriormente à maioridade penal
como se constituíssem “maus antecedentes”. Ignoram, talvez, ser o Brasil
signatário de tratados e convenções internacionais em matéria de infância e
juventude, dentre os quais as chamadas Regras de Beijing (Regras Mínimas das
Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude).
Nelas, o verbete 21, ao tratar dos “Registros”, dispõe: “21.1 Os registros de jovens
infratores serão de caráter estritamente confidencial e não poderão ser
consultados por terceiros. Só terão acesso aos arquivos as pessoas que
participam diretamente da tramitação do caso ou outras pessoas devidamente
autorizadas. 21.2 Os registros dos jovens infratores não serão utilizados em
processos de adultos em casos subsequentes que envolvam o mesmo infrator”
(grifei). No mesmo sentido, o art. 143, caput, da lei 8.069/90 (Estatuto da Criança
e do Adolescente) veda “a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos
que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato
infracional”, enquanto o artigo 144 da mesma lei limita a expedição de cópia ou
certidão de atos a que se refere o artigo anterior à autoridade judiciária
competente, mesmo assim se “demonstrado o interesse e justificada a finalidade”.
A inafastável necessidade de adequação às normas apontadas faz cair por terra,
por si só, os três enunciados propostos. Como se isso não bastasse, vê-se que o
FONAJUC faz uma leitura contaminada (de preconceitos, sede de punir…) dos
dispositivos legais invocados. O art. 59 do Código Penal elenca parâmetros para a
fixação da pena-base, dentre os quais os antecedentes, a conduta social e a
personalidade do agente. É de fácil conclusão a impossibilidade de valorar (e não
“valorizar” como dito no enunciado) os atos infracionais eventualmente cometidos
pelo indivíduo para afastar a pena-base do mínimo legal, pois não consubstanciam
“antecedentes” . Tampouco podem ser compreendidos nos conceitos de “conduta
social” ou “personalidade”. Também no que se refere à decretação da prisão
preventiva, temos que o inciso II do artigo 313 fala em “condenação definitiva por
outro crime doloso”, o que evidentemente não permite que se computem os atos
infracionais. Como diz Lenio Streck, “a lei penal deve ser prévia, certa, escrita e
estrita, razão pela qual não se admite analogia in malam partem” (em
https://www.conjur.com.br/2015-out-22/senso-incomum-stj-faz-interpretacaoextensiva-
direito-penal-reu). Por fim, o enunciado que trata da faculdade de
aplicação do § 4º do artigo 33 da Lei 11.343/06 para o agente que ostentar
passagem por ato infracional beira o absurdo. Há muita resistência na aplicação
do redutor, seja qual for o histórico do agente. Ocorre que o referido § 4o não
faculta a aplicação, mas tão-somente o quantum a ser reduzido (um sexto a dois
terços), sendo o agente primário, ostentando bons antecedentes, não se
dedicando habitualmente a atividades criminosas e nem sendo integrante de
organização criminosa. Uma vez que os atos infracionais – repita-se – não podem
pesar na aplicação de pena por ato cometido após o advento da maioridade,
impossível afastar por tal motivo a redução e nem poderá fundamentar uma
redução abaixo do máximo de 2/3 (dois terços). A visão do FONAJUC a respeito
das pessoas que cometeram atos infracionais é tão míope que sequer se
preocupa o Fórum em prever “representação socioeducativa procedente, em
definitivo”, bastando-lhe levianamente falar em “registro de atos infracionais”.
Revela, assim, não reconhecer que, quando um adolescente tem diversas
passagens no sistema socioeducativo, quem falhou foi o Estado, que teve
diversas oportunidades de recuperá-lo para o convívio em sociedade e falhou.
ENUNCIADO 35 – A apreensão de rádio transmissor ou outro dispositivo de
comunicação, em situação de tráfico de drogas, é indicativa de integração
em associação e participação no tráfico de drogas, o que afasta a aplicação
do artigo 37 da Lei 11.343/06. – Aprovado por maioria
De acordo com o Enunciado 35, a posse de rádio transmissor ou outro
dispositivo de comunicação, como um aparelho de telefone celular por exemplo,
em situação de tráfico de drogas, afasta a incidência do art. 37, da Lei
11.343/2006, que apena as condutas de quem colabora, como informante, com
grupo, organização ou associação destinados à prática de qualquer dos crimes
previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 da referida lei, cuja pena é de reclusão,
de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e pagamento de 300 (trezentos) a 700 (setecentos)
dias-multa.
Assim, para o FONAJUC, aquele que estiver de posse de um rádio
transmissor ou de um aparelho celular em um contexto de tráfico de drogas
responderia pelo crime previsto no art. 35 da Lei 11.343/2006, que prevê pena de
reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200
(mil e duzentos) dias-multa pela associação, de duas ou mais pessoas, para o fim
de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33,
caput e § 1º, 34 e 36, da lei de repressão ao tráfico de drogas.
A transformação do colaborador em associado ao tráfico de drogas tem
basicamente dois problemas.
Primeiro. De acordo com a pesquisa divulgada pelo IBGE, 77,1% da
população brasileira com 10 anos ou mais de idade, tinha um aparelho de telefone
celular próprio em 2016. Isso amplia significante o número de pessoas que podem
ser presumidas como associadas ao tráfico, ainda que se trate de um simples
usuário que apenas esteja de posse de um celular adquirindo drogas.
Segundo. Afirmar que a posse de um aparelho de comunicação é
indicativo de associação para o tráfico de drogas sem o efetivo uso desse
aparelho para os fins de se associar ao tráfico revela não a pretensão de tutelar
um bem jurídico, mas uma nova modalidade de responsabilidade penal que foge à
regra finalística, ultrapassando a ação do sujeito para encontrar seu fundamento
na crença fundamentalista do intérprete de que pessoas que simplesmente moram
ou transitam por locais onde drogas são comercializadas não têm qualquer motivo
para usar um aparelho de comunicação que não o de se associar ao tráfico.
A responsabilidade penal, ampliada aprioristicamente pelo significado
que é atribuído à simples ação de estar de posse de um aparelho celular, torna-se
objetiva, o que justifica, para o FONAJUC, a conclusão pela verdadeira revogação
do art. 37 da Lei 11.343/2006.
O Enunciado 35, portanto, revela a opção do FONAJUC pelo senso
comum e pela aplicação discricionária do direito, ignorando a exigência de uma
interpretação construtiva e compromissada com os direitos fundamentais.
ENUNCIADO 36- Não há direito subjetivo e interrogatório por carta
precatória, cuja necessidade de expedição será aferida pelo juiz. – Aprovado
por maioria
O princípio do contraditório e ampla defesa (art.5º, LV, da CF), que
decorre do devido processo legal (art5º, LIV, da CF), está indelevelmente
sedimentado no ordenamento pátrio. Dentro do processo penal, um dos atos a
afirmar esse postulado reside no interrogatório. Conforme o art.185, caput, do
CPP “O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do
processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor,
constituído ou nomeado”. Já o art.187, do CPP, estabelece o rito detalhado do
interrogatório, em resumo constituído por perguntas sobre a pessoa do acusado e
sobre os fatos. A dúvida é gerada a partir do momento em que o acusado é
domiciliado em outro Juízo que não o processante. Nesses casos, há
entendimento de que o acusado deverá comparecer perante o Juízo processante
para o interrogatório. Entretanto, na sistemática mais adequada, ante às naturais e
notórias dificuldades de deslocamento, num universo de pessoas criminalmente
processadas e que são em sua absoluta maioria economicamente vulneráveis,
exigir a presença do acusado perante o Juízo processante no lugar de expedir
precatória para seu interrogatório é obstaculizar a defesa. Com efeito, dentro de
um processo penal constitucional, não possibilitar a expedição de carta precatória
para a realização de ato tão relevante significa impedir o acusado de se defender,
o que gera explícita ofensa ao direito subjetivo seu. A normatização a esse
respeito não deixa margens para interpretações. Inclusive, a atual discussão
envolvendo o interrogatório via precatória não se refere à sua natureza jurídica,
direito subjetivo, mas tão somente sobre a possibilidade de sua feitura excepcional
por sistema de videoconferência (art.185, §2º, do CPP). E mesmo essa medida
encontra questionamentos constitucionais, a começar pela violação ao
fundamento da dignidade da pessoa humana. Assim, o interrogatório, inclusive
via carta precatória, insere-se no direito subjetivo do acusado e a ele deve ser
possibilitada a sua realização nessa modalidade, sob pena de vício insanável.
ENUNCIADO 37 – Poderá o juiz analisar a necessidade da expedição de carta
precatória para oitivas de vítimas e testemunhas no momento da audiência
de instrução e julgamento. – Aprovado por maioria
O enunciado parte de premissas ligadas à epistemologia autoritária,
fruto irreflexivo e consolidado de práticas jurisdicionais e/ou policiais. Ao aderir à
tese de que cabe ao juiz decidir as provas que podem, ou não, ser produzidas (no
caso, prova oral que necessita da expedição de carta precatória), a partir de
elementos e critérios não previstos expressamente na legislação brasileira (qual
critério? A certeza prévia da culpa? Da inocência?), abre-se o caminho para o
arbítrio e o abandono da imparcialidade, entendida como equidistância dos
interesses em jogo (e, consequente, a não-adesão prévia a qualquer das teses
parciais) durante a atividade recognitiva típica do processo judicial.
Como se sabe, a estrita jurisdicionalidade e a natureza cognitiva do
processo, que integram qualquer perspectiva democrática de processo penal,
exigem condições concretas que permitam a verificação da hipótese acusatória.
Não basta um simulacro de procedimento probatório com o objetivo de esconder
que a decisão sobre a hipótese acusatória já foi tomada. Em atenção ao devido
processo legal, portanto, só são possíveis condenações baseadas em provas
concretas produzidas em um procedimento estritamente previsto em lei que
permita, em atenção aos direitos e garantias fundamentais do imputado, tanto a
verificação quanto a refutação da hipótese acusatória.
O processo penal, entendido como um processo de cognição (ou de
comprovação de acontecimentos), exige um procedimento probatório que exclua,
na medida do possível, as valorações judiciais e o subjetivismo inquisitorial do
julgador tanto no que diz respeito ao fato definido por lei como crime quanto no
que se refere às provas que ainda não foram produzidas. Descabem, por evidente,
avaliações acerca do custo e do benefício de uma diligência probatória, isso
porque o Estado que pretende punir um indivíduo tem o dever de arcar com os
custos de um processo adequado à Constituição da República (o Estado-Juiz, em
que pese a influência da racionalidade neoliberal, ainda não é uma empresa a ser
gerida com objetivo de lucro). Mas, o principal ainda não foi explicitado: a
valoração sobre a utilidade de uma determinada prova é um momento do
procedimento probatório (ou, mais precisamente, um momento do julgamento do
caso penal) logicamente posterior à produção da mesma. Como valorar a
“necessidade”, a “utilidade” ou o “poder de convencimento” de uma prova que
ainda não foi produzida? Como, sem dons mediúnicos, saber o que uma
testemunha ou vítima dirá em sua oitiva?
Com esse enunciado, o Poder Judiciário afasta-se, mais uma vez, do
modelo acusatório, no qual a gestão da prova (o poder de decidir sobre qual prova
produzir em seu interesse) está nas mãos das partes. Prestigia-se, a partir da
opção política contida no enunciado (nunca se pode esquecer que o processo
penal é um locus de disputa política), uma prática ligada ao hábito mental típico
das inquisições, mas que ainda produz efeitos concretos na prática processual
penal a partir do que alguns chamam de “inconsciente inquisitório”.
O que se pretende ao evitar a gestão da prova pelo órgão julgador é
tentar preserva-lo, do ponto de vista psicológico, de qualquer condicionamento
pelo interesse contido na acusação, de qualquer adesão prévia à versão
acusatória. A função de acusar (e o correlato ônus de provar a acusação) não
pode ser entregue à mesma pessoa encarregada de julgar com imparcialidade.
Afinal, “o juiz, senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela
visão que tem (ou faz) do fato, privilegiando-se o mecanismo ‘natural’ do
pensamento da civilização ocidental que é a lógica dedutiva, a qual deixa ao
inquisidor a escolha da premissa maior, razão pela qual pode decidir antes e,
depois, buscar, quiçá obsessivamente, a prova necessária para justificar a sua
decisão”.
Atribuir ao juiz o poder de decidir sobre a necessidade da produção
de uma prova significa também aderir ao subjetivismo inquisitivo que compromete
a imparcialidade do julgamento. Aumentam, com a opção retratada no enunciado,
os riscos: a) de decisões judiciais proferidas com base em certezas delirantes; b)
de construções de “verdades” ao gosto do julgador; e c) do “primado da hipótese
sobre o fato”, denunciado por Franco Cordero. O enunciado sugere que se
abandone a tentativa de verificar empiricamente a ocorrência, ou não, do fato
criminoso atribuído ao réu para se contentar com um julgamento baseado na
autoridade do juiz. A busca da verdade eticamente possível acaba substituída pela
reafirmação da autoridade do juiz para decidir o que pode ou não ser útil ao
processo. Em outras palavras, abandona-se o caráter cognoscitivo do processo
para contentar-se com uma visão do processo como mero efeito do poder e da
vontade do juiz. Mas, não é só.
O enunciado, naquilo que Freud chamaria de “ato falho”, acaba por
revelar o desapreço à imparcialidade, que, no modelo sugerido pelos juízes que
aprovaram o texto, deixa de ser uma condição de legitimidade da função
jurisdicional. Ao reconhecer ao juiz de um caso concreto o poder de analisar a
necessidade da expedição de carta precatória para a oitiva de vítimas e
testemunhas no momento da audiência de instrução e julgamento, se está a
admitir que esse julgador possa ter uma convicção formada sobre a autoria e a
materialidade do delito antes mesmo do encerramento da instrução e das
alegações finais das partes.
A necessidade da prova está ligada à confirmação ou refutação da
acusação: para os juízes que aprovaram o enunciado é legítimo que o juiz já tenha
confirmado (ou refutado) o fato atribuído ao réu antes do encerramento da
produção das provas legais e legítimas propostas pelas partes. Em outras
palavras: pretende-se legitimar que o juiz possa aderir a uma das teses parciais
antes do momento previsto em lei para a decisão judicial. Por evidente, uma
concepção minimamente democrática de processo penal deve privilegiar a
existência de provas concreta, produzidas sob o crivo do contraditório, e não
convicções prévias que impossibilitem a produção de provas.
ENUNCIADO 38 – Não há nulidade na condenação do réu com base em
confissão judicial, se firmada em harmonia com outros elementos
investigativos. – Aprovado por maioria
Como ensina Aury Lopes Jr. (Direito processual penal. 14. Ed., São
Paulo : Saraiva. 2017, p. 342) , “a atividade do juiz é sempre recognitiva”, sempre
se destina a reconstruir um fato histórico com os elementos trazidos ao processo,
o que, por si, demonstra que a corriqueiramente invocada verdade real é um mito
platônico.
Importa analisar, neste ponto, qual o sistema processual penal adotado:
se inquisitorial ou acusatório.
O sistema inquisitorial concentra no juiz as funções de produzir a prova,
admiti-la e apreciá-la no julgamento do fato. O interesse e a proximidade do juiz
com a prova o levam a decidir e, depois, tomar a iniciativa de buscar elementos
probatórios que possam lhe servir de embasamento. Há evidente interesse no
resultado do processo.
Já no sistema acusatório, com nítida separação entre as funções de
acusar, defender e julgar, cabe às partes produzir, contraditar e refutar a prova no
esforço de influir no convencimento do juiz, que julgará à vista dos elementos
probatórios trazidos a sua presença. Para o magistrado, deve ser indiferente se o
resultado do processo será de condenação ou absolvição.
No Brasil, o Código de Processo Penal, influenciado pelo código
fascista italiano, tem regras que conferem ao juiz a iniciativa de certas provas,
como a determinação da produção antecipada de provas prevista no seu artigo
156, I. Embora devam sofrer uma filtragem constitucional, tais disposições levam à
classificação do nosso sistema como neo-inquisitório, pois, apesar de a
Constituição da República ter adotado o princípio acusatório em seu artigo 129, I,
há uma cultura inquisitória que nega efetividade aos ditames constitucionais com
prejuízo aos direitos e garantias dos réus.
Exemplo dessa cultura inquisitorial é o Enunciado 38 aprovado por
maioria no II FONAJUC/2018, cujo teor é o seguinte: “Não há nulidade na
condenação do réu com base em confissão judicial, se firmada em harmonia com
outros elementos investigativos.”
Ora, não se pode conferir à confissão um peso maior do que as demais
provas produzidas sob o crivo do contraditório: já se vão alguns séculos desde
que, na Idade Média, a confissão era coroada como uma jovem e despótica rainha
das provas.
Se prova é o elemento produzido em processo judicial, com
observância ao contraditório e à ampla defesa, não são provas os “elementos
investigativos” colhidos no Inquérito Policial, que se prestam apenas a embasar a
admissibilidade da acusação e de medidas cautelares na fase pré-processual.
Harmonizar a confissão com elementos inquisitivos, que não são
provas, seria considera-la exclusivamente como fundamento da condenação,
conferindo-lhe peso superior.
Nesse passo, o Enunciado 38 colide frontalmente com o artigo 155, do
CPP que estabelece que a convicção do juiz deve se embasar na prova produzida
sob o crivo do contraditório, na medida em que a confissão judicial somente será
fundamento válido para a condenação se estiver em harmonia com as demais
provas produzidas sob o crivo da ampla defesa e do contraditório, não podendo
ser o exclusivo fundamento da condenação criminal.
ENUNCIADO 39 – É dispensável a realização de processo administrativo
disciplinar para apuração de cometimento de falta grave no curso da
execução penal em casos de fuga ou cometimento de novo crime, admitida,
ademais, a regressão cautelar para fins de recaptura. – Aprovado por maioria
O princípio do contraditório e ampla defesa (art.5º, LV, da CF), que
decorre do devido processo legal (art.5º, LIV, da CF), está indelevelmente
sedimentado no ordenamento pátrio. A Constituição nesse sentido não faz
distinção entre processo judicial ou administrativo. Diante disso, inquestionável a
necessidade do processo administrativo disciplinar para a apuração do
cometimento de falta grave no curso da execução penal, sem exceções, ou seja,
inclusive nos casos de fuga ou de cometimento de novo crime. A inobservância
dessa condição resultará em nulidade de toda e qualquer decisão que reconhecer
falta grave, seja em sede administrativa ou judicial. A matéria inclusive foi
sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula 533 do STJ, de 2015). A
ressalva que se faz é para o caso de novo crime. Neste aspecto, nada obstante
precedentes jurisprudenciais contrários, ante a literalidade da lei (art.118, I, da
LEP), o que se deve exigir é que para o reconhecimento da falta grave haja
sentença penal condenatória transitada em julgado. Ou seja, apenas o processo
administrativo disciplinar não é suficiente. Para que haja reconhecimento da
prática de fato definido como crime é preciso que seu autor seja considerado
culpado e isso apenas se dará quando houver trânsito em julgado de sentença
penal condenatória (art.5º, LVII, da CF). Finalmente, sobre a teratológica
“regressão cautelar para fins de captura”, a medida não encontra absolutamente
nenhuma previsão legal, seja na LEP, seja no CPP, seja em lei esparsa. Medida
dessa natureza afronta novamente o devido processo legal, a ampla defesa e o
contraditório. E quanto aos fins supostamente apontados (recaptura), nada impede
que por ocasião da fuga ou evasão seja expedido mandado de prisão no regime
em que o apenado se encontrava, fechado, semiaberto ou aberto. Uma vez
cumprido o mandado, os atos respectivos à sua categoria serão efetuados,
inclusive com apresentação imediata em Juízo se assim determinado.
ENUNCIADO 40 – É possível a decretação de prisão preventiva em vista do
cometimento reiterado de crimes de pequena expressão. – Aprovado por
maioria
A prisão preventiva, dado seu caráter excepcional e subsidiário,
somente é admitida nos regimes democráticos quando incabível sua substituição
por medida cautelar menos severa. Além disso, o ato de constrição reclama a
demonstração, no caso concreto, da presença de um ou mais dos seus
pressupostos, taxativamente enumerados no artigo 312 do Código de Processo
Penal, sob pena de afronta ao artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal.
Assim, é certo que a prisão cautelar não se confunde com prisão penal,
já que enquanto a primeira é instrumento voltado à garantia do bom andamento do
processo penal de conhecimento, a segunda constitui sanção imposta àquele que
teve sua culpabilidade reconhecida por meio de sentença condenatória transitada
em julgado, conforme dispõe a Constituição Federal.
Nesse sentido, o tão só cometimento reiterado de crimes não constitui
fundamentação idônea a justificar a segregação cautelar, devendo o decreto
prisional indicar o motivo concreto e específico pelo qual o indivíduo, em liberdade,
ameaçará a ordem pública ou econômica, ou, ainda, prejudicará a aplicação da lei
penal ou a conveniência da instrução. Ainda, é de se apontar que a interpretação
do artigo 313 do Código de Processo Penal, sobretudo de seu inciso II, não pode
se dar de forma isolada ao comando previsto no artigo 312, sendo certo que o
primeiro somente tem aplicação quando presentes o fumus boni juris e o
periculum libertatis previstos neste último dispositivo.
No caso de crimes de pequena expressividade e, portanto, praticados
sem violência ou grave ameaça à pessoa, a prisão decretada em face tão
somente da reiteração delitiva é ainda mais arbitrária, eis que dissociada da
indicação do real e concreto risco que o indivíduo, em liberdade, oferece ao
processo ou à sociedade. Além disso, é de se apontar que a prisão preventiva
deve estar atrelada à observância do princípio da proporcionalidade, revelando-se
inadmissível nas hipóteses em que seja possível antever que, ao final do processo
e havendo condenação, o regime de cumprimento de pena imposto será menos
gravoso que o fechado – o que ocorre nos crimes de pequena expressividade, via
de regra.
A prisão preventiva fundamentada genericamente, destituída da análise
do caso concreto e apoiada em meras conjecturas, reflete lamentável aplicação do
direito penal simbólico ou, ainda, do direito penal do inimigo, transformando o
Poder Judiciário em instrumento de vingança e punitivismo cego, típico dos
regimes de exceção. Mais que isso, ao subverter sua finalidade cautelar e
instrumental, constitui inaceitável antecipação da pretensão satisfativa estatal, em
manifesta afronta ao princípio da não culpabilidade e, portanto, da vedação ao
retrocesso em matéria de direitos e garantias fundamentais.
ENUNCIADO 41 – A decisão proferida no HC 143641 do STF não incide sobre
reeducandas já condenadas, ainda que provisoriamente. – Aprovado por
maioria
ENUNCIADO 42 – A decisão proferida no HC 143641 do Supremo Tribunal
Federal não dispensa a análise prudente e independente do juízo
competente, à luz do caso concreto, acerca da excepcionalidade da situação.
– Aprovado por unanimidade
O enunciado 41 do II FONAJUC/2018, aprovado por maioria,
estabelece o que segue: “A decisão proferida no HC 143641 do STF não incide
sobre reeducandas já condenadas, ainda que provisoriamente.”
No HC 143641, o STF proferiu decisão vinculante a todos os
magistrados brasileiros declarando o direito das presas gestantes, puérperas e
lactantes à prisão domiciliar, determinando que os Tribunais efetivassem tal
decisão em prazo determinado.
De início, há que se chamar a atenção para a sofrível redação do
enunciado que se refere a “reeducandas já condenadas”.
Ora, tratando-se de um enunciado elaborado por um Fórum Nacional de
juízes criminais, presume-se que a matéria debatida no evento e constante dos
enunciados seja a penal.
Apesar disso, o enunciado refere-se a “reeducandas”, o que incute uma
razoável dúvida no leitor ao aparentar estar se referindo a adolescentes
submetidas a medida socioeducativa.
Ocorre que, em se tratando do sistema socioeducativo, não é técnico
nem adequado considerar condenada uma adolescente que recebeu a aplicação
de uma medida socioeducativa por força de sentença que julgou procedente a
representação. Não se aplicam penas a adolescentes nem os julgados poderão
ser considerados desabonadores em futura e eventual sentença condenatória por
fato praticado após o alcance da maioridade.
Definitivamente, não é adequado usar o termo “condenadas” ao se
referir a adolescentes e isso é conhecimento elementar aos iniciados em matéria
de infância e juventude.
Em todo o caso, ainda que o enunciado se refira à aplicação de medida
socioeducativa em decorrência de sentença, por força dos Capítulos II e III, da Lei
8.069/90, que tratam respectivamente dos direitos individuais e das garantias
processuais do adolescente, incidem as normas do CPP aos processos judiciais
por atos infracionais, assim como todos os princípios, direitos e garantias
constitucionais processuais penais assegurados aos adultos.
Cabe ressaltar, portanto, que, tanto os adolescentes como os adultos,
têm assegurados seus direitos fundamentais, dentre os quais a presunção de
inocência ou de não culpabilidade, inserta no artigo 5º, LVII, da Constituição da
República, segundo a qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória”. Em matéria juvenil, até o trânsito em
julgado da sentença de procedência da representação.
Note-se que a Constituição da República estabeleceu expressamente o
critério objetivo para a delimitação temporal da presunção de inocência que é o
trânsito em julgado da sentença condenatória ou de procedência da
representação. Trata-se de regra clara que não dá espaço para interpretações,
muito menos para restringir direitos. As normas definidoras de direitos e garantias
individuais, porque diretamente vinculados à Dignidade Humana, devem sofrer
interpretações ampliativas, nunca restritivas em obediência às regras de
hermenêuticas constitucionais e em consonância com o que dispõe o artigo 5º, §
2º, da Lei Maior.
Saliente-se que todo o sistema jurídico-constitucional tem por
pressuposto a presunção de inocência, não sendo à toa que o artigo 108, do ECA,
estabelece o prazo máximo de 45 dias para a medida de internação antes da
sentença, atendendo aos princípios da brevidade e da excepcionalidade da
medida extrema e provisória (art. 121, caput, do ECA).
Desse modo, tratando-se de condenada adulta ou de adolescente com
aplicação de medida de internação em decorrência de sentença de procedência
da representação, incide a garantia individual da presunção de inocência ou da
não culpabilidade.
Nesse passo, para além da atécnica redação, andou mal o Enunciado
41 ao estabelecer que a decisão proferida no HC 143641 do STF não incide sobre
“reeducandas já condenadas”, ainda que provisoriamente, uma vez que fere de
morte o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade.
E, além da inconstitucionalidade, o enunciado em tela afasta indevida e
aprioristicamente a incidência do julgado do HC 143641 do STF cujo teor vincula
todas as magistradas e todos os magistrados brasileiros.
Vale dizer que uma decisão vinculante, notadamente quando trata de
direitos humanos, consiste em precedente, ratio decidendi, e somente pode ser
afastado excepcionalmente, à vista do caso concreto, aplicando-se a técnica de
Distinguishing importada do direito processual norte-americano pelo novo CPC.
Ao aplicar ou afastar o precedente, o julgador deverá distinguir os
elementos de fato do precedente que se repetem ou não no caso concreto sob
análise. Jamais se pode afastar abstratamente a decisão vinculante sem sequer
analisar o específico caso concreto sub judice, caso contrário os juízes criminais
participantes do II FONAJUC estariam legislando positivamente de forma anômala
à sua função constitucional.
Aliás, o Enunciado 42, do II FONAJUC/2018 vem reforçar o que foi
acima exposto: “A decisão proferida no HC 143641 do Supremo Tribunal Federal
não dispensa a análise prudente e independente do juízo competente, à luz do
caso concreto, acerca da excepcionalidade da situação.”
É evidente que a decisão proferida no HC 143641 do Supremo Tribunal
Federal não tem aplicabilidade direta e automática, pois, afinal, é uma decisão
judicial, não um ato editado pelo Poder Legislativo. Porém, somente
excepcionalmente pode ser afastado o precedente e com fundamento nos fatos
sob apreciação.
Saliente-se, por oportuno, que a própria decisão do HC 143641
esclarece que pode ser afastada “(…) em situações excepcionalíssimas, as quais
deverão ser devidamente fundamentadas pelos juízes que denegarem o benefício.
(…)” e “se o juiz entender que a prisão domiciliar se mostra inviável ou inadequada
em determinadas situações, poderá substituí-la por medidas alternativas arroladas
no já mencionado art. 319 do CPP.”
(http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.
pdf).
Diante do que foi exposto, constata-se que o Enunciado 42 é totalmente
desnecessário porquanto repete o teor da decisão proferida no Leading Case,
limitando-se a reafirmar o papel de todo magistrado diante de um caso ao qual se
aplica um precedente vinculante.
Por outro lado, o Enunciado 41, para além da redação dúbia e
equivocada, peca por afastar aprioristicamente uma decisão vinculante do
Supremo Tribunal Federal, desconsiderando a necessária comparação entre a
decisão paradigma e o caso concreto. E vai além por padecer de
inconstitucionalidade ao violar o princípio da presunção de inocência.
Sendo assim, é forçoso afirmar que os Enunciados 41 e 42 do II
FONAJUC/2018 são inaplicáveis à luz do nosso ordenamento jurídicoconstitucional.
ENUNCIADO 43 – As medidas cautelares do art. 319 do Código de Processo
Penal, assim como o regime de prisão domiciliar, não atendem à previsão do
art. 42 do Código Penal para efeito de detração. – Aprovado por maioria
O dispositivo do Código Penal – CP que trata da detração penal assim
prescreve: “Art. 42 – Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de
segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão
administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no
artigo anterior.”
O Código de Processo Penal – CPP, no seu Título IX, prevê três
modalidades de prisões provisórias, quais sejam a prisão em flagrante (Capítulo II,
arts. 301 a 310), a preventiva (Capítulo III, arts. 311 a 316) e a prisão domiciliar
(Capítulo IV, arts. 317 e 318). Portanto, o entendimento de que a prisão domiciliar
não atende à previsão do artigo 42 do CP para efeito de detração não possui um
mínimo sustentáculo normativo em qualquer regra legal. Para ser mais claro, por
não considerar prisão o que prisão é, esse enunciado 43 é de uma ilegalidade
gritante, teratológica.
Em relação às medidas cautelares diversas da prisão, igualmente
previstas no CPP, implicam em restrições na liberdade de ir e vir (art. 319, incisos
I, II, IV), na liberdade de se comunicar (art. 319, III), na liberdade de agir (art. 319,
VI), na liberdade de dispor do seu patrimônio (art. 319, VIII), na sua intimidade (art.
319, IX) e até mesmo na privação absoluta ou relativa da liberdade (art. 319, V e
VII).
Todas essas circunstâncias são relevantes porque implicam em
restrições a Direitos Fundamentais e, como tais, não podem ser desprezadas de
consideração pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, diz o CP: “Art. 66 – A pena
poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou
posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.”. Portanto, as
medidas cautelares diversas da prisão são circunstâncias que embora não
previstas em lei expressamente como atenuantes, são circunstâncias atenuantes
inominadas.
Embora não caiba fazer a detração das medidas cautelares diversas da
prisão com o cumprimento de pena nos regimes fechado ou semiaberto, é
possível também haver em relação ao regime aberto quando o recolhimento for
em residência particular, nos termos do art. 117 da Lei das Execuções Penais –
LEP, se a medida cautelar diversa da prisão imposta durante o processo tiver sido
a do artigo 319 inciso V (“recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de
folga”). Isso ocorre com base nos princípios da proporcionalidade e da
razoabilidade.
E usando a mesma razão e proporção, deve-se detrair do tempo das
penas restritivas de direitos ou do período probatório da suspensão condicional da
pena (art. 77 do CP) o tempo de cumprimento de algumas medidas cautelares
diversas da prisão, desde que guardem proporção. Isso ocorre, por exemplo, na
mera prestação de serviços à comunidade com as medidas cautelares que
restringem a liberdade de ir e vir (ex.: proibição de acesso ou frequência a
determinados lugares) ou que a privam relativamente (como no caso do
recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga).
ENUNCIADO 44 -Poderá o juiz indeferir diligências requeridas pelas partes
que esteja ao alcance dessas. – Aprovado por maioria
Embora o Juiz não seja despachante das partes, cabendo a cada uma
buscar os documentos e certidões respectivas, inclusive se valendo da Lei de
Acesso à Informação (Lei 12.527/11), deve-se garantir a paridade de armas. Isso
porque ao contrário do Ministério Público, a Defesa em regra não possui o poder
de requisição. O Ministério Público pode requisitar, inclusive sob pena de crime, os
documentos e certidões que entender conveniente para comprovação de sua
hipótese acusatória, além de contar com a cooperação institucional dos demais
Ministérios Públicos. A defesa, por sua vez, ao comprovar a dificuldade de
obtenção ou mesmo a precariedade dos meios, deve ter o direito deferido, sob
pena de violação da paridade de armas e cerceamento de defesa. A questão não
pode ser vista somente a partir do mesmo tratamento, mas sim das condições
iniciais desfavoráveis, em geral, à defesa.