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Crianças inocentes apenadas – por Siro Darlan
MAZOLA, 11 minutos ago 0 9 min read
Por Siro Darlan –
Embora a Constituição Federal afirme que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar com absoluta prioridade os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, o Estado, além de não implantar as políticas públicas necessárias para a implementação desses direitos, tem sido o maior transgressor, propiciando o cumprimento de penas às crianças além do princípio da responsabilidade pessoal do apenado. A Constituição da República também consagrou que nenhuma pena passará da pessoa do condenado. Apesar do princípio do respeito à dignidade da pessoa humana consagrar que crianças têm o direito à convivência familiar e comunitária, tem sido comum carcereiros e membros do ministério público proibindo a visita de crianças a seu pais privados de liberdade.
A Convenção das Nações Unidas preconiza que todas as ações relativas à criança, sejam elas levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de assistência social, tribunais, autoridades administrativas ou órgão legislativos, devem considerar primordialmente o melhor interesse da criança. Todos esses enunciados tem sido letras mortas no cenário jurídico nacional. Recentemente um artista pop manifestou seu amor ao pai, preso há quase trinta anos, e do qual está privado até mesmo de receber um abraço ou qualquer outro tipo de carinho, apesar de seus 23 anos, teve seu gesto de amor filial criminalizado nas razões de um promotor que ao invés de valorizar o gesto amoroso de um filho, tornou-o um agravante para propor um maior isolamento do preso de seus familiares.
Para um desenvolvimento sadio, toda criança precisa ter contato físico com seus pais, a mãe que alimente e cuida de seu corpo e mente e o pai que acalenta com seu contato físico como é natural e normal entre crianças pequenas e pais: sentar no colo, descansar a cabeça no ombro ou no peito paterno, esfregar as bochechas, sentir a respiração. Essa proibição gera nas crianças e adolescentes desafios e dificuldades psicológicas, comportamento antissocial, suspensão ou a expulsão da escola, dificuldades financeiras e até atividade criminosa. A força ou a fraqueza do vínculo entre pais e filhos desempenham um papel significativo na capacidade da criança de superar desafios e ter sucesso na vida.
Quando um dos pais é encarcerado, o Estado pune as crianças também. O pai deve pagar pelo erro cometido, mas as crianças não precisam pagar o preço pelo que não fizeram. Filhos de pais encarcerados podem ser afetados de diversas formas, como a prisão do pai ou da mãe pode desestruturar o ambiente familiar e causar consequências que podem mudar a vida das crianças e adolescentes. Nunca estivemos tão amparados pelo Direito; no entanto, sabemos que, de fato, regras e comportamentos, em geral, muito se distanciam da legalidade. A despeito da existência da Lei de Execuções Penais – LEP, é notório o despreparo, a desinformação e a ausência de estruturas que dificultam ou impedem a sua aplicação. À luz do art. 41, Seção II, da LEP, que versa sobre os direitos do preso condenado ou provisório e trata do direito das visitas, refletimos sobre como é instigante o fato de que sua elaboração não determine, enumere ou discrimine as relações sociais que poderão ser estabelecidas com um preso durante a visita. Quanto à visita de crianças, então, provavelmente por um descuido do legislador, possibilitou-se às instituições carcerárias o uso do poder discricionário, ou seja, cada instituição tem seu regimento interno no que diz respeito a essas visitas.
Contudo, não se pode deixar de anunciar os avanços ocorridos no que diz respeito aos tratamentos dispensados aos presos. É interessante observar que o respeito à dignidade humana já acenava para uma inevitável mudança das políticas públicas carcerárias, conforme Thompson (1993) trata em seu livro A Questão Penitenciária.
A Constituição de 1988 traz uma nova feição para o Código Penal; no entanto, as mudanças ocorreram gradativamente, a partir da publicação das Leis de Execuções Penais, no que se refere aos presos provisórios e sentenciados, que regularam e normatizaram o tratamento dispensado a estes. Como o Direito é posterior ao conflito, não é de se estranhar a ausência da criança na referida legislação.
Considerando algum parentesco com o presidiário, podemos inferir que a ausência de referência às visitas, na Lei, implica uma invisibilidade da criança enquanto sujeito de direitos. Compreender como a criança vivencia essa relação de poucos contatos, da qual pouco se fala, mas muito se sente, é desafio a ser enfrentado.
Quais as consequências para a criança, a experiência de ter um pai encarcerado e conviver em um ambiente onde os familiares se manifestam penalizados com tal situação. Como é para a criança perceber a dificuldade de serem ouvidas a respeito dessas questões, tanto nas famílias quanto no sistema carcerário.
O que se percebe é que o Estado ignora seu dever constitucional de cuidar desses vínculos possíveis – e quase impossíveis – das crianças com seus pais encarcerados nos leva a questionar a postura do Estado, de indiferença, e que reflete as relações humanas estabelecidas na sociedade, na qual, para os encarcerados, o que se perde é a liberdade. Já para a infância, resta a difícil condição de não conviver cotidianamente com os pais e, posteriormente, quem sabe, tentar restabelecer esses vínculos.
A criança tem seus direitos sociais definidos pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, dentre outras regulamentações decorrentes da Carta Maior. Segundo esses documentos, a criança tem direito a ser criada no seio da família, seja ela a natural, preferencialmente, ou a substituta, em casos especiais e, ainda, pelo Estado, de forma suplementar. Tem direito à educação voltada para suas necessidades e características e às atividades culturais. A legislação define que a criança e ao adolescente também não podem trabalhar, salvo como aprendizes, assegurando que tenham tempo para desenvolver-se o melhor possível. Boa parte da atenção desses textos legais é voltada para a criança, a fim de que ela tenha melhores condições de ter acesso às atividades recomendadas para a sua idade. A esse respeito, a Constituição Federal evidencia o princípio de igualdade, nas dimensões estática e dinâmica: o art. 5º da Constituição acolhe o sentido estático: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.” O art. 3º, inciso III, prevê, em sua segunda parte, o sentido dinâmico, pois fixa, como objetivo do País, a redução “das desigualdades sociais e regionais”, como relatado em documento de 2002, do Movimento de Inter fóruns de Educação Infantil do Brasil.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) define uma política mais descentrada de atendimento à criança, baseada no princípio da democracia participativa, com a criação de conselhos, dos quais participam órgãos públicos e organizações não-governamentais. Não existe uma legislação específica que remeta às necessidades e formas de acolhimento e atenção às crianças que têm seus pais encarcerados. Dessa forma, o tratamento dispensado a essas, no momento em que visitam um progenitor em um centro carcerário, não difere daquele dispensado ao adulto, violência impossível de se traduzir, como escreveu Buffard, citada por Thompson: A revista não é nem pode ser considerada uma simples operação de controle: ela agride, ao mesmo tempo, o corpo real, o corpo imaginário e o corpo simbólico. O homem revistado é um homem possuído (Buffard, apud Thompson, 1998, p.63).
Várias críticas são cabíveis frente à postura do Estado no caso da visita da criança, e uma delas refere-se a tal tratamento. É justo que a criança, sujeito de desejo, sujeito em desenvolvimento, tenha sua infância marcada pela ausência de políticas que atendam direta e indiretamente quem está sob a tutela do Estado? Levando-se em consideração a população carcerária, podemos multiplicar por duas ou três crianças o número daquelas que compõem cada núcleo familiar com a presença do presidiário. Será esse número pouco significativo para representar um país daqui a quinze ou vinte anos? Como o Estado pode viabilizar mudanças nesse sentido, recebendo-as como sujeitos de direitos? Essas são questões de primeira importância acerca da produção de uma infância que tenha, de fato, seus direitos respeitados no Brasil.
Como ponto coincidente, percebemos que toda dinâmica familiar é alterada, e passa a fluir tendo, como ponto central, o genitor encarcerado. De obrigações assumidas até constrangimentos morais, passam a fazer parte de um período que todos esperam terminar com a saída do cônjuge da prisão. Podemos dizer que o período de cumprimento da pena será marcado pela entrada de todos os familiares no mundo do cárcere. O vínculo familiar que elas constroem nessa fase, geralmente com os seus pais, funciona como uma espécie de ensaio: é a preparação para que a criança aprenda as normas da sociedade em que está inserida. O aprisionamento materno ou paterno nesses primeiros anos de vida não só compromete o vínculo entre pais e filhos, como também cria obstáculos para que novas relações sejam construídas, sobretudo se o bebê não experimentar outra forma de afeto parental.
Recentemente foi sancionada a Lei 14987/24 que assegura o atendimento médico e psicossocial a crianças e adolescentes que tiveram qualquer dos pais privados da liberdade. Mas assim como a lei que assegura a prisão domiciliar para pais que têm filhos crianças (até 12 anos), quando serão respeitadas pelas autoridades judicantes? Esse é um retrato das angústias e medos experimentados por jovens que recebem a notícia de que o pai ou a mãe estão na prisão. Queda no rendimento escolar, isolamento dos colegas, longos períodos em silêncio, repressão dos próprios sentimentos e, não raro, o adoecimento mental são algumas das consequências que são obrigados a enfrentar.
“O ódio que a sociedade alimenta contra quem é alvo do sistema penal repercute sobre as crianças e jovens. Muitas, inclusive, deixam a escola por sofrerem preconceito”, diz a doutora em psicologia social Alessandra Vieira, que agrega: “e essas crianças são invisíveis para o Estado, que não desenvolve nenhum tipo de proteção para quem passa por esse tipo de experiência”.
SIRO DARLAN – Advogado e Jornalista; Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Ex-juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), aposentado compulsoriamente por conceder benefício a preso em risco de vida, que uma vez preso faleceu nas grades da crueldade estatal; Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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