O Estado Criminoso VI – por Siro Darlan

Imagem: Reprodução / TV GloboCOLUNISTASESPECIALPOLÍTICAO Estado Criminoso VI – por Siro Darlan  MAZOLA9 horas ago 0  9 min read  23058

Por Siro Darlan –

Série Presídios XX.

“A tirania é um hábito; tem seu próprio desenvolvimento e, enfim, se converte em doença. Acredito que o melhor dos homens pode abrutalhar-se e embotar-se por hábito, até chegar ao nível de um animal. O sangue e o poder embriagam: desenvolvem-se a grosseria, a perversão, os fenômenos mais anormais se tornam acessíveis e, por fim, doces ao intelecto e ao sentimento. O homem e o cidadão morrem para sempre no tirano, e apara ele se torna quase impossível retornar à dignidade humana, ao arrependimento, ao renascimento.”

Fiódor Dostoievsky. Recordações da Casa dos Mortos.

De outra feita, o mesmo sujeito entrou no isolamento (espaço destinado ao castigo e aos presos que estão saindo ou chegando na facção) com sua gangue para espancar e torturar presos nus que eram agredidos com pauladas ou barradas de ferro até se mijarem de dor ou desmaiarem. Era um sujeito com índole ruim, um homem que se achava um coronel lidando com homens escravizados que viviam nas suas terras e dependiam dele para sobreviver. Um ditador maldito a quem em hipótese nenhuma se devia dar o poder, que só usava para massacrar os outros. Circulava na época que, lideranças da milícia estavam pagando a ele, seu subdiretor e seu chefe de segurança para massacrar a facção ADA com todas as espécies de coisas, como revistas (gerais) excessivas e demasiadamente repetitivas em pouquíssimo espaço de tempo, em que muitos objetos principalmente roupas e calçados eram roubados dos presos.

O pior momento de sua vida carcerária fora justamente esse, durante a primeira onda da pandemia de Covid em 2020, sob a direção do animal que atendia pelo nome de Cabral. Primeiro foi a cantina da Unidade que foi fechada – antes mesmo do início da pandemia -, em seguida foi proibida a visita, a escola ficou fechada, mas mesmo assim todos os presos pegaram Covid. Alguns com sintomas mais graves como falta de ar, a maioria com sintomas médios, com dor de cabeça e dor no corpo todo, febre alta, perda total dos sentidos de paladar e olfato e fraqueza. Houve também um número considerável de assintomáticos ou com sintomas leves, com febre baixa e dor de cabeça acompanhada de tosse.

Petrus fora um dos que tiveram sintomas médios, sofrera a noite toda com muita febre, dor de cabeça, dor muscular, principalmente nas pernas, acompanhados de calafrios e suadouros intercalados. Chegou mesmo ao delírio causado pela febre alta, tudo isso sem nenhuma espécie de medicação. Houve mesmo um período em que a enfermaria ficou completamente fechada sem funcionamento. Se dizia que um enfermeiro da Unidade havia morrido de Covid. O jeito foi enfrentar a Covid com as armas que tinha: fé, oração (pelo menos para isso), e a firme determinação de não se entregar, de não morrer ali naquela maldita cadeia que já havia roubado 17 anos de sua vida. Por isso fora mencionada somente uma noite onde a Covid prevaleceu, pois na manhã seguinte, mesmo se sentindo fraco pela noite não dormida em que passara lutando contra o vírus, Petrus se levantou reunindo as forças que lhe restavam e foi tomar sol na galeria – tinha visto na televisão que tomar sol ajudava na recuperação da Covid.

Nesse período sombrio, onde absolutamente todos tinham que se alimentar exclusivamente da lavagem servida como refeição, única fonte de alimentação disponível para impedir a morte por inanição, todos os presos foram avisados pela direção, que por sua vez repassava uma decisão da Coordenação de Segurança de que em hipótese nenhuma se deveria pedir emergência médica. Deveriam suportar todos os sintomas da Covid em suas próprias celas, sem jamais pedir emergência, pois as coisas por lá (na UPA) não estavam boas. Isso foi avisado em tom de ameaça, como quem diz: “aqui vocês ainda tem uma chance de sobreviver, pra lá quem vai não volta, encontra uma morte certa, por isso é melhor nem tentar”.

Vista do Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu. (Foto: Divulgação)

O coletivo entendeu o recado, houve quem se rastejasse pelo chão de fraqueza enquanto tentava se dirigir ao sanitário, mas ninguém pediu emergência. A fama da UPA já era ruim o bastante, com relatos de enfermeiras assassinas que toda noite escolhiam suas vítimas que, despachavam para o inferno com inferno com uma injeção, sabe Deus do quê. Além dos maus tratos dos agentes do SOE, que costumavam entulhar mais de vinte presos num espaço suficiente apenas para quatro, no máximo cinco, além de agredir e espancar alguns por qualquer motivo. Como o transporte para a UPA ou Sanatório penal era realizado por essas bestas vestidas de preto, muitos evitavam pedir emergência. Porém, durante a pandemia, o recado ameaçador intensificou essa percepção e no primeiro momento, absolutamente ninguém pediu emergência médica.

Em algum momento que precedeu a pandemia, os presos do regime semiaberto que estavam e Niterói na Cadeia Pública Ismael Pereira Sirieiro, foram transferidos para a Penitenciária Lemos Brito (Bangu VI) e alojados em apenas duas galerias, passando a viver num ambiente em que em nada se assemelhava a uma prisão semiaberta – era e ainda é o regime fechado para os presos em regime semiaberto, contrariando o que determina a Lei de Execução Penal e o artigo 33 do Código Penal Brasileiro.

E justamente no meado da primeira onda de Covid, Petrus foi transferido para o “regime semiaberto”, ou seja, foi retirado do pavilhão B (regime fechado) e colocado no pavilhão A (regime semiaberto), cuja única diferença consistia na intensificação da miséria e degradação humana, causada pela falta de recursos na maldita semiaberta em regime fechado.

Nessa época, se viu obrigado a fazer todo tipo de coisa (exceto se prostituir ou coisa do gênero) para arrumar algum dinheiro. Comprava garrafas de dois litros de cachaça produzida na própria Penitenciária, acrescentava leite condensado e preparo para refresco em pó e vendia a dois reais a dose de batida. Mas isso não lhe rendia muito dinheiro, vendia muito fiado e depois tinha muito aborrecimento para receber. Além disso, vendia lanches, como pão com mortadela, pão com patê, ou simplesmente pão com margarina e dose de café.

Com o mísero dinheiro que ganhava fazendo isso, Petrus alugava o telefone para falar com sua nova mulher (que só fora lhe ver quatro vezes na cadeia), e sempre que podia mandava dinheiro para ajudá-la.

Até o ano de 2021, Petrus já havia trabalhado por quase 11 anos na cadeia, mas há muito que já não recebia nada para isso, trabalhava de graça, apenas para remir sua pena, até isso lhe ser tirado também e ter que pedir permissão para exercer trabalho voluntário sem receber e sem remir sua pena – apenas mais um trabalhador clandestino no Sistema Penitenciário Carioca.

A última vez que tinha recebido algum dinheiro da Fundação Santa Cabrini, tinha sido em 2017, ainda no Bangu IV. No Bangu VI, nunca chegou a receber um centavo, apesar de ter trabalhado oficialmente de 2018 a 2021, mas soube que os faxinas – os presos que se vestem de verde e trabalham na parte externa ou administrativa das cadeias, mas não fazem parte do coletivo propriamente dito, geralmente milicianos – recebiam mensalmente o dinheiro repassado pela Fundação Santa Cabrini. Quanto aos outros presos, não recebem nada, nem na cadeia nem na rua, pois receber o dinheiro do pecúlio se tornara tarefa quase impossível para os presos que saem de liberdade. Alguns, nem contratando advogado particular para tentar receber, pois estão lidando com uma máfia gigantesca que ao invés de remunerar o preso por suas atividades laborativas exercidas, só faz explorar os mesmos para encher cada vez mais os bolsos de pilantras engravatados que administram os valores que eram e ainda são desviados – o último desvio de que se tem notícia (em 2023) fora de 78 milhões, que simplesmente desapareceu dos cofres da quase beatificada Fundação Santa Cabrini, exploradora do trabalho do interno dentro e fora das cadeias no Estado do Rio de Janeiro. Mais uma vez é o Estado Criminoso mostrando suas caras, ao mesmo tempo que tenta escondê-la, sob uma máscara de Instituição íntegra. Maldita Santa Cabrini, quem dera fosse feito contigo o mesmo que os agentes do Estado Criminoso fizeram ao Amarildo da Rocinha, e desaparecesse para sempre. Que os teus juízes sejam tão severos quanto o foram com o personagem desta história e menos condescendentes do que o foram com o preso ilustre chamado Sérgio Cabral, que vai bem obrigado, em seu apartamento em Copacabana.

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SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.