O cangaço e a milícia – por Siro Darlan
MAZOLA, 11 horas ago 0 4 min read
Por Siro Darlan –
Não há, e nunca houve, no Brasil, um povo livre regendo seu destino na busca de seu propósito de prosperidade, igualdade e justiça social.
O que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de enriquecimento pessoal, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente.
É prodigiosa a capacidade da classe dominante para recrutar, desfazer e reformar gentes para não permitir qualquer tipo de partilha social com os mais humildes. Esse empreendimento econômico secular afastou qualquer tentativa de criar um povo autônomo, mas manter uma população subalterna a seus caprichos de subsunção das categorias sociais servis utilizando seus corpos para a produção de riquezas das quais se apropriavam sem qualquer possibilidade de partilha. Aí estão os latifúndios e os privilégios em todos os campos de desenvolvimento humano como a saúde, a educação e a moradia digna. Uma classe dominante de caráter consular-gerencial, socialmente irresponsável geradora de violência, preconceito, dor e sofrimento, regando uma massa escravizada e marginalizada, fora da civilização letrada.
Todas as tentativas de criação de sociedades economicamente alternativas como Canudos, Palmares, as Missões dos Jesuítas e as Comunidades dos Beatos foram cruelmente agredidas, assim como foram derrubados os governantes que sinalizaram a favor das reformas estruturantes como Vargas e Jango.
Em meados de 1930, surgiram no Nordeste Brasileiro, como resposta às injustiças sociais da época, os bandos de cangaceiros, com um tipo de heroísmo selvagem, com extrema ferocidade, ora sob pretexto de revolta contra as injustiças perpetradas pelos donos do poder, ora para vingar ofensas pessoais ou familiar, ora com o pretexto de promoção da divisão de bens com os pobres. Se por um lado distribuíam os bens expropriados, por outro lado, matavam, estropiavam e violentavam por simples exibição de força e machismo. O cangaço surgiu como resposta ao sistema senhorial do latifúndio pastoril, que frequentemente fazia uso dos próprios bandoleiros para atacar seus adversários nas disputas de terra, acoitando bandidos e lhes dando cobertura econômica e política.
Se cada bando de cangaceiros tinha seus coronéis costeiros, que os escondiam e protegiam em suas terras, também possuíam apoio político para fortalecer o poder da oligarquia a que serviam como soldados. Portanto era o próprio sistema que alentaram e incentivaram a violência dos cangaceiros.
Não é exagero comparar o que fazem as milícias hoje em certos territórios, inclusive com forte representação política, com a ação dos cangaceiros. Foi na zona oeste do Rio de Janeiro, justamente região ocupada pela maioria da população mais empobrecida, que surgiu, inicialmente sob pretexto de combater a criminalidade, as milícias urbanas, transformadas depois na própria criminalidade que explora e submete a população desprotegida pelo estado em reféns de sua ação violenta e predadora, e, como os cangaceiros criando verdadeiros núcleos de sicários a serviço do poder econômico e da elite dominante.
Nesses dois momentos da história da violência, são os pobres trabalhadores as maiores vítimas por serem os mais negligenciados na ação política de proteção que deveria ser a principal função do estado. No momento atual é maior ainda a gravidade uma vez que as milícias são formadas por soldados treinados e armados pelo próprio estado, que depois de expulsá-los das corporações policiais, aumenta o grau de violência e agressividade dos milicianos.
SIRO DARLAN – Advogado e Jornalista; Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Ex-juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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