O Estado Criminoso III – por Siro Darlan MAZOLA, 2 horas ago 0 10 min read 21013
Por Siro Darlan –
Série Presídios XVII.
“Todo tratamento desdenhoso, toda hostilidade irrita os de condição inferior.” “Qualquer um, seja quem for e por mais humilhado que se sinta, mesmo que instintivamente, mesmo que inconscientemente, ainda assim exige respeito à sua dignidade humana. “
Fiodor Dostoivski. Recordações da Casa dos Mortos.
Quando Petrus chegou, algumas paredes em frente a sua cela estavam sujas de sangue, quatro dias antes havia tido uma chacina. O CV havia comprado a cadeia e estourado os cadeados das suas oito celas para decapitar seus inimigos, um dos quais se chamava Marcha Lenta do morro do São Carlos, um sniper que acertava com precisão um homem a quilômetros de distância, causando muitas baixas ao Comando Vermelho. Por isso nessa rebelião ele foi um dos principais alvos, sendo pego facilmente na cela especial onde morava, para ter sua cabeça decepada junto com outros que tiveram o mesmo destino. Isso ocorrera pouco antes do Natal de 2003 na sede da Polinter Centro. A matança só acabou quando os líderes do CV que se encontravam ali receberam ordem dos líderes superiores que estavam no Bangu III, para terminar a chacina.
Uma vez dentro da cela se tinha que conviver com outros cento e poucos presos, suportando um calor superior a 50° (cinquenta graus centígrados) a qualquer hora do dia ou da noite. Cada preso tinha direito a três minutos no boi (o lugar infecto que deveria ser o banheiro da cela), para tomar banho e fazer suas necessidades, depois só poderia ir novamente após os cento e poucos presos terem ido no boi.
A noção de dia e noite era facilmente perdida, uma vez que os presos não viam a luz do sol; somente o confere permitia ter uma noção de que se estava no final da tarde ou os dias de visita que podiam ser de segunda a sexta, desde que o preso pagasse para receber sua visita. Quem não podia pagar podia ter uma visita por semana, por cerca de duas horas. A visita íntima custava 50,00 reais por meia hora de segunda a sexta, e a cantina vendia quase de tudo como uma espécie de mini mercado.
Foi naquele lugar que Petrus começou a frequentar os cultos evangélicos que eram realizados na cela, e se libertou do ódio que sentia de seu pai, sendo capaz de perdoá-lo e se arrepender do mal que intentara lhe fazer.
Havia naquele lugar ama espécie de acordo entre os policiais presos, a facção ADA e a facção TCP que no caso de uma nova rebelião promovida pelo Comando Vermelho, se uniriam contra ele para salvaguardar as próprias vidas. Várias foram as vezes que os P.O abriram os cadeados das celas de ADA e TCP com a orientação de saírem para o pátio com um pano branco amarrado na cabeça ou no braço para serem identificados, na hipótese do CV tomar a cadeia novamente. Os policiais que estavam presos lá eram alguns que haviam participado da chacina de Vigário Geral, chacina da Candelária e policiais integrantes de grupos de extermínio de São Gonçalo e da polícia mineira. Para permanecerem vivos criaram essa espécie de acordo com as facções menores numericamente para poder resistir a mais numerosa. O pano branco era um sinal visível para poder se identificar os aliados e esfaquear somente os inimigos em comum. Isso para alguns era por demais aterrorizante, os novatos tinham até medo de respirar, até se acostumar com o inferno e deixar de se importar com a morte que poderia ocorrer a qualquer momento.
Muitos pagavam para ir para o presídio de sua facção e sair de lá. O valor cobrado geralmente era de 200,00 reais. Quem não pagava podia ficar perambulando de carceragem em carceragem da Polinter por até cinco anos, antes de ser morto ou poder chegar em seu presídio de origem. Quando inaugurou a casa de custódia de Benfica muitos pagaram para ir para lá, mas ao invés de escapar do inferno encontraram a morte em uma nova rebelião do Comando Vermelho na cadeia inaugurada. Novamente o CV tinha comprado a cadeia para arrancar a vida de seus inimigos – dessa vez às centenas, mas um número muito inferior de mortos foi divulgado na mídia, muitos foram dados como desaparecidos, pois seus corpos foram despedaçados e jogados no esgoto.
Duzentos reais era o preço cobrado para ter o privilégio de ser morto na casa de custódia de Benfica. Quem não podia pagar continuou na Polinter, sobrevivendo no inferno como um animal exposto a todo o tipo de doenças de pele e respiratórias como pneumonia e tuberculose que tirou a vida de muitos.
Petrus sobreviveu, completou 19 anos, depois foi transferido para a 39 DP – Pavuna, depois de volta para a Polinter Centro e de lá para a 73 DP em Neves – São Gonçalo, onde permaneceu por nove meses numa cela escura onde era comum os presos desmaiarem por causa do calor. Nessa carceragem da Polinter (73 DP Neves), Petrus fora recebido com pauladas e cachorros ferozes que o impediam de se mexer enquanto apanhava ao lado de outros nove presos que, juntamente com ele haviam sido transferidos da Polinter Centro para lá, acusados de tentativa de rebelião por quase terem sido mortos por cerca de cento e vinte presos do CV que estavam no pátio central durante o confere, quando os P.O os mandaram passar ao lado deles em direção às suas celas.
O chefe da carceragem se chamava Seu Robson, um homem alto, moreno, que andava com uma guia religiosa pendurada no pescoço. Ele pessoalmente havia recebido Petrus e seus nove companheiros, com violentos tapas dos dois lados do rosto ao mesmo tempo, o típico “telefone”, capaz de furar os tímpanos de qualquer um. Enquanto fazia isso gritava “esse é o ritmo, esse é o ritmo”. Dele também havia partido a ordem para os faxinas agredirem com pauladas, Petrus e seus companheiros. Alguns anos depois (em 2013), durante a apuração das escolas de samba do grupo especial, numa transmissão ao vivo pela rede Globo de televisão, Petrus veria seu Robson sentado ao lado do Neguinho da Beija Flor, junto com outras poucas pessoas na mesa da diretoria dessa escola de samba. Provavelmente fora promovido de torturador de cadeia a carnavalesco ou segurança particular do presidente da escola.
Que Leviatã se alimente de suas vísceras e afogue sua alma no mar de sua ira.
A situação na 73 DP era tão desesperadora que se o próprio Satanás aparecesse oferecendo ajuda em troca de vender a alma para ele assinando um pacto, Petrus teria assinado na hora. A essa altura já tinha deixado de frequentar os cultos evangélicos e só conseguia sentir ódio, havendo perdido as esperanças de uma ajuda divina. Mas a verdade era que ele não podia contar com ninguém para sair daquela situação, pois Deus lhe parecia surdo e Satã parecia não estar interessado em nenhum pacto ou coisa parecida. Estava abandonado à própria sorte, o jeito era enfrentar aquela situação e procurar se manter vivo, apenas sobreviver, com a esperança de um dia voltar a viver. Mas esse dia ia demorar, demorar muito, demorar demais. Somente com 37 anos de idade Petrus poria os pés na rua novamente, e somente por sete dias, pra depois voltar para cadeia e ser punido por não ter fugido, ou seja, punido pela fuga de três presos que ocorrera no regime fechado na penitenciária Lemos Brito, onde oficialmente cumpria pena em regime semiaberto. Se soubesse disso naquela época, nos idos de 2004 e 2005, talvez tivesse se matado, ou provocado a própria morte por outros ao sair correndo do carro do SOE (Serviço de Operações Especiais da SEAP), quando conduzido ao Fórum, por exemplo. Mas não conhecia o futuro, jamais imaginou que chegaria o ano de 2023 com ele ainda preso, lutando por uma vaga de emprego que alguns desgraçados estavam (e ainda estão) vendendo por preços que variam de três mil a seis mil reais.
Depois da primeira sentença que fora de dezessete anos, Petrus foi transferido da 73 DP de Neves para o Presídio Ary Franco em Água Santa, município do Rio de Janeiro. Já tinha ouvido falar da fama da Água Santa (o presídio que havia lá e era chamado assim), quando ainda se encontrava na DAS. Ângelo, vulgo Primo do Complexo do Alemão, segurança do traficante chamado de Curinga, e o mesmo que havia rendido o jornalista Tim Lopes e se encontrava preso ali na DAS por causa disso, fora quem contara para Petrus as barbaridades que havia visto, sofrido e presenciado lá. Primo lhe detalhara como homens eram literalmente laçados como bois por presos de facção, que estavam dentro das celas, em frente das quais tinham que passar muitos que lá chegavam e pertenciam a outras facções. Só havia um caminho estreito a se passar, com celas dos dois lados, pertencentes ao TCP ou ao PCJ (Primeiro Comando Jovem) que só existia ali na Água Santa, com presos dessas facções lançando cordas trançadas feitas de tiras de lençol o laço armado para puxar um para junto das celas, onde seriam esfaqueados ou estocados e morreriam em poucos minutos pela imensa perda de sangue.
Água Santa era uma cadeia subterrânea, com vários andares abaixo do nível do solo, onde havia pavilhões destinadas a todas as facções existentes, além das divisões dos chamados seguros, com lideranças rivais. Todo preso tinha que passar por lá por ser um presídio de triagem, uma espécie de distribuidora do Sistema Carcerário do Estado do Rio de Janeiro.
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SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.