O exercício do dom.

Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a democracia.

 

Um casal de amigos convidou-me para passar um fim de semana em sua casa em Saquarema. Na lógica de uma sociedade onde tudo é precificado é algo inusitado um ato de doação entre amigos. Depois de duas horas de viagem, fomos, eu e minha esposa, recebidos numa aconchegante casa de praia. O primeiro choque foi identificar se eu era um hóspede ou o anfitrião, tamanha a interação entre essa oferta de carinho e a recepção dessa graça. As ações humanas desinteressadas criam vínculos espirituais e mostram na verdade a força da doação desinteressada.

O próximo tema da série Filosofia na Praia será uma reflexão sobre o ato de doar. Marcel Mauss estudou que povos antigos não vendiam seus produtos, não passavam pelo ato egoísta de obter lucros com o trabalho alheio. Havia uma troca de doações mútuas. Um antropólogo visitando uma tribo indígena se encantou com um artesanato e quis comprar o objeto do cacique indagando-lhe quanto custava. O indígena estranhou o interesse de compra e respondeu ao visitante. Se você gostou é seu. Insistiu o cientista, mas quanto custa? Não tem custo o prazer de doar é superior.

A lógica do projeto Filosofia na Praia passa por essa doutrina. Doar sem o interesse do retorno. É assim que há três anos um grupo de pessoas se reúne na Praia do Leme aos sábados quinzenais para uma troca de conhecimentos onde nada é precificado. É uma doação coletiva onde a presença de cada um é o próprio presente. Inclusive os palestrantes que se doam sem qualquer interesse econômico. A essência do paradigma do dom é criar vínculos com o outro e com o Transcendente. O paradigma do dom é apresentado como aquele elemento que se fez presente, sob diversas formas, desde o início das relações sociais humanas. É algo que sempre esteve presente nas diferentes atividades humanas.

Foi assim que Deus saiu de sua longínqua divindade para se dar enquanto homem e viver entre os seres humanos, doando-se e ensinando-nos a nos doar uns aos outros. É assim que se confunde a graça e a experiência humana da doação. Quando damos um presente, estamos compartilhando um momento de alegria e a doação é um bem compartilhado. Já ouvi muitas vezes que as pessoas que adotam uma criança, ao contrário do que pensam alguns, recebem muito maior satisfação do que o próprio adotado. Experimentamos esse prazer toda vez que compartilhamos alguma experiência com nossos semelhantes, sejam nos grupos escolares, na experiência da economia solidária, no Grupo Alcóolicos Anônimos, no Grupo de pais adotantes. Esse compartilhamento da entrega ao outro gera vínculos sociais e espirituais.

Na atualidade a precificação de tudo é uma forma de coisificar os valores que nos leva a condição de humanos e solidários. Doar a quem necessita nos torna dignos da vida recebida para compartilhar o dom que recebemos. Ouvi uma frase que choca os ouvidos de quem frequenta as redes sociais com sangue nos olhos. “Você vale mais que a pior coisa que você já  fez”. Difícil entender que uma pessoa que tenha cometido um crime abominável, ainda assim , por se tratar de uma criatura humana, tenha mais valor que o crime que praticou.

Segundo Leonardo Boff. “A graça é relação, é êxodo, é diálogo, é abertura, é história de duas liberdades e encruzilhada de dois amores. Porém a graça é mais do que o tempo, mais do que a pessoa, mais do que a história, É sempre o mais que acontece, na gratuidade inesperada.” O dom constitui a forma de laços sociais, de relações, tanto simples como complexas, que estruturam a base de muitas sociedades, cuja a regra fundamental não repousa sobre contratos, mas sobre três obrigações complementares: dar, receber e retribuir, que ultrapassam os interesses materiais, calculistas, mas a troca tem outras razões simbólicas.