O futuro foi negado.

            Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e Membro da Associação Juízes para a Democracia.

            Quem diria que já houve campo de concentração no Brasil? Pois é disso que se trata, quando uma política higienista do Estado Brasileiro afastava os filhos de portadores de uma doença de seus pais, negando-lhes o direito à convivência familiar e comunitária, o carinho e cuidados dos pais e os colocava compulsoriamente me “preventórios”, onde além do “apartheid” familiar e comunitário, eram privados da liberdade e sofreram todo tipo de violência, incluindo estupros, violência física, psicológica e até assassinatos, em nome do Estado brasileiro. Embora o futuro seja um mistério, não se sabe o que vai acontecer amanhã, mas para essas crianças negaram até o direito de sonhar e ter futuro. Muito morreram nas masmorras do Estado e poucos sobreviveram despersonalizados e sem passado afetivo.

            O Congresso Nacional, reconhecendo a culpa do Estado brasileiro por esse crime contra a humanidade, editou a Lei 11520/2007, que concede uma pensão mensal às pessoas atingidas pela hanseníase que foram submetidas a isolamento e internação compulsória em hospitais-colônia, a título de reparação. Contudo esqueceu o legislador de estender essa reparação aos filhos isolados, que sofreram mais que seus pais, que bem ou mal, estavam internados em “hospitais-colônia”, em tratamento, mas e os filhos que nenhum tratamento receberam a não ser, nas palavras deles “porradas e violações dos direitos humanos”. Mantê-los separados de seus familiares não foi diferente da prática nazista de levar judeus, ciganos e portadores de doenças para os campos de extermínio.

            Não foi diferente dos trabalhos escravos e forçados, dos estupros e assassinatos dos campos de concentração. Ainda que hoje estejam em liberdade, nunca serão os mesmos, faltam-lhes a base familiar afetiva e educacional, faltam-lhes referências, além de terem negado o futuro, apagaram seu passado. Trata-se, portanto de crime de caráter permanente, que nunca sairá da formação e do psique da pessoas que sofreu tais danos. Segundo todos os tratados internacionais de direitos humanos, trata-se de crimes perpetrado de forma desumana ( já reconhecida pela Lei 11520/2007 em nosso ordenamento jurídico) – extermínios, separação familiar, extermínios e desaparecimentos. Generalizados e sistemáticos, praticados contra parte determinada da população civil: os filhos de hansenianos. E uma política promovida por agentes públicos do Estado.

            Assim como o Brasil reconheceu a imprescritibilidade dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar, e sendo signatário do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, assim como da Convenção Americana de Direitos Humanos, e como afirmou a Assembleia Geral das Nações Unidas, de 1950 que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis, suas consequências nocivas às vítimas dessa política higienista devem ser suportadas e reparadas pelo Estado, enquanto estiverem vivos com todas as suas sequelas as vítimas dessa política desumana. Embora a Constituição do Brasil preveja apenas duas hipóteses de imprescritibilidade em seu artigo 5º., inc. XLII, é evidente que tendo aderido aos tratados internacionais de direitos humanos, tais regras devem ser aplicadas como direito supraconstitucional que é.

            A Convenção sobre imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade da Assembleia Geral da ONU, de 26 de novembro de 1968, define como imprescritível em seu artigo 1º.:

“2. Os crimes contra a humanidade, sejam cometidos em tempo de guerra ou em tempo de paz, como tal definidos no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg de 8 de agosto de 1945 e confirmados pelas Resoluções nº 3 (I) e 95 (i) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 13 de fevereiro de 1946 e 11 de dezembro de 1946; a evicção por um ataque armado; a ocupação; os atos desumanos resultantes da política de “Apartheid”; e ainda o crime de genocídio, como tal definido na Convenção de 1948 para a prevenção e repressão do crime de genocídio, ainda que estes atos não constituam violação do direito interno do país onde foram cometidos”.

            A Morhan é um organismo de reunião desses filhos separados que pretendem ver seus direitos à reparação respeitados pelo Estado brasileiro. Para tanto, alguns ingressaram com ações individualmente e já obtiveram ganho de causa em duas ações julgadas pelo Tribunal do Rio Grande do Sul, outros dois, também individualmente aguardam que O Supremo Tribunal Federal – STF analise e decida a questão da imprescritibilidade desses direitos. Com é de conhecimento o histórico do STF é de vanguarda e reconhecimentos e prestígio dos direitos humanos. A Morham conta com uma Rede Jurídica de advogados que voluntariamente e “pro bono” auxiliam a causa desses brasileiros tão sofridos. Contam ainda com o ingresso como amigos da corte do Projeto Legal e da Comissão Nacional dos Direitos Humanos, da Defensoria Pública Federal e do Conselho de Direitos Humanos da OAB Nacional.

            Resta-nos torcer para que se faça justiça no judiciário, mas se não houver o reconhecimento desse direito humano inalienável, ainda resta o protagonismo do Congresso Nacional para reparar essa dívida histórica com mais de 30 mil brasileiros que cumpriram pena de isolamento social e privação de liberdade pelo simples fatos de seus paia serem portadores de uma doença.