O SUPLICIO COMO FORMA DE DOMINAÇÃO.

Siro Darlan – agosto 2020

            O poder dos soberanos da monarquia foi substituído polo poder do capital. Se antes o Rei decidia quem podia viver e quem devia morrer, exercendo em nome do Divino o poder de forma vertical. Com o advento do capitalismo, o poder dos monarcas foi transferido para a aristocracia capitalista que decide não apenas quem deve viver ou morrer, mas o que se deve consumir, como viver ou como sobreviver de forma tão absolutista como nos tempos da monarquia. A monarquia sucumbiu quando o povo entendeu que vivia a vida que lhes era imposta. O capitalismo chegou de forma mais sedutora não com uma maçã na mão, mas com toda forma de consumismo que vai desde a oferta de pequenos objetos até o comércio de pedaços do corpo humano até todo o corpo do indivíduo transformando humanos em máquinas produtivas.

            O Capital exige corpos dóceis e uteis/produtivos para que possam viver e viver enquanto produzir e for útil. Para isso dispõe de uma ferramenta de disciplina e controle baseado em princípios de produção e utilidade. Para tanto dispõe de instituições disciplinadoras que regem as vidas humanas desde o nascimento com determinismos que vão desde escolha do sexo, passando pelas suas características educacionais e sociais, etiquetando cada pessoa, não como elas são, mas como devem ser. A máquina criativa dispõe sobre os corpos das crianças adestrando-as segundo os interesses de produção e mercado. Homens precisam ser fortes e focados para a produção, mulheres para serem dóceis e obedientes com os afazeres do lar.  Para isso servem os brinquedos e brincadeiras de meninos e meninas, o modo de vestir de um e do outro gênero, que para fins capitalistas devem ser binários. Desse modo qualquer um que saia desse modelo é considerado anormal e descartável.

            Assim funciona a macrofísica do poder que é exercido de forma vertical. O dominador sobre o dominado. O súdito deve ser, portanto, produtivo e produzido através do poder disciplinar para que os corpos e sujeitos sejam dóceis e úteis, como ensina Foucault: “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo.” O poder disciplinar serve para fazer com que os cidadãos fiquem mais dóceis e mais produtivos. E esse adestramento começa na infância. Daí essa resistência montada contra a efetivação da lei que assegura direitos às crianças e adolescentes. Jamais o capital aceitará a condição de sujeitos de direitos àqueles que são objeto do adestramento socialmente conveniente para a produção.

            Para isso serve o modelo padronizado de educação onde os indivíduos são colocados estrategicamente “cada um no seu quadrado”, separados em carteiras enfileiradas, com certo distanciamento, enquanto o professor se coloca de pé em cima de um platô para poder vigiar e punir os que não escreverem conforme a cartilha ditada de cima pra baixo, ali como num rebanho, o professor vai classificando por notas e elogios ou castigos e exclusões que estereotipam os alunos em bons e maus. Inteligentes e parvos. E essa classificação é tão importante para o mercado que há “olheiros” dentro dos estabelecimentos educacionais para escolher os melhores, os mais produtivos. Assim começamos a eleger os que serão descartados e excluídos.

            A ação de controle e vigilância da escola visa disciplinar os corpos e os indivíduos numa uniformidade. Assim esse processo de robotização do ser humano que foi criado por Deus com seu livre arbítrio, a independência para escolher entre o bem e o mal, o que fazer de sua individualidade e por isso cada homem é dotado de sua própria personalidade única. Mas a Família, a Escola, o Quartel, a Fábrica robotizaram o homem a serviço da produção. O que interessa é que produzam e consumam. Os que não se enquadrarem são considerados descartáveis, para esses criaram os hospitais, os manicômios e as cadeias. Todo aquele que não é considerado “normal” é mandado para essas instituições com o objetivo de se tornarem dóceis e úteis para produzirem.

            Passamos, portanto, de um poder absoluto, quando o Monarca, como representante de Deus na Terra, decidia que podia viver e quem devia morrer, para um absolutismo do capital que muda os destinos da humanidade e o lema passa a ser “fazer viver e deixar morrer”. Isso porque os corpos passaram a ser fonte de lucratividade. Os corpos precisam produzir mais e durante maior numero de anos. Daí o progresso das ciências médicas que alongam a vida dos sujeitos produtivos, enquanto a falta de assistência médico-hospitalar accessível serve para deixar morrer aqueles classificados como matáveis porque não produzem satisfatoriamente. Quem produz muito, alonga a vida para continuar produzindo. Quem não produzir é considerado descartáveis. A sociedade investe na manutenção dos corpos dóceis, úteis e produtivos. Dai porque a eliminação de tantos sujeitos descartáveis não causa indignação.

            A morte de milhares de crianças da periferia e das favelas não causam a indignação que causa a morte de uma única criança na zona sul do Rio ou na área nobre de São Paulo. O discurso é que não há pena de morte, mas quando se manda para o sistema penitenciário 70% de negros é porque o espírito da escravidão e docilidade dos corpos ainda domina os poderes de julgamento. Ainda faz parte do imaginário que a cor da pele influencia na criminalização, como disse uma juíza recentemente “se é negro só pode fazer parte da associação criminosa”. Mesmo não havendo pena de morte a pena de isolamento é para uma morte lenta e indigna. Daí porque o próprio Supremo Tribunal Federal considerou o sistema penitenciário brasileiro em estado de inconstitucionalidade, seja pela seletividade dos condenados, seja pelas condições indignas que elegem a morte lenta e gradual como a real pena aplicada aos matáveis do capitalismo.

            São também considerados anormais aqueles aos quais foi negado o direito a habitação, ao saneamento, ao trabalho, à educação e vivem nos quilombos modernos e tem sua própria cultura, sua dança, sua música, sua religiosidade, sua origem africana ou nordestina, e por terem tais características embora sejam todos produtivos segundo seus talentos, são considerados descartáveis. Daí se nega o acesso a uma saúde de qualidade, uma educação inclusiva e integral, para que morrendo deem lugar a outros corpos mais produtivos. É por causa dessa desigualdade social que os sujeitos são diferenciados entre vivente e matáveis. Sentimos muito essa seletividade nesse período de pandemia onde os o vírus de democrático e atinge todas as classes produtivas ou não, mas matam mais os pobres por negação da necessária atenção de saúde. Um exemplo desse fato foi uma das primeiras mortes foi a de uma doméstica que pegou o Covid da patroa que acabara de chegar da Itália. A patroa sobrevivei e a doméstica morreu.

            Foucault afirmou que foi criada “uma espécie de animalização do homem, posta em prática através das mais sofisticadas técnicas políticas, fazendo surgir na história […] a simultânea possibilidade de proteger a vida e de autorizar seu holocausto.”  Agaben traz a colação a figura do homo sacer que nos remete ao tempo em que o Direito Romano arcaico pela primeira vez relacionou a vida humana ao caráter de sacralidade e afirmava que “se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida”, quer dizer autorizava a morte do homem eleito como sagrado, como todo ser humano é, porque sendo ele sagrado seu matador não será considerado um homicida.

            A sacralização do capital, Deus do Ouro e da Moeda, permite que seus soberanos detentores do capital escolham os que devem morrer e elegeram os que vivem na periferia, as diversidades sexuais, os indígenas, os negros e os que ousaram se rebelar contra esse poder soberano que comanda todo ambiente global, que pretendem destruir com sua máquinas mortíferas. Só sobrevive aqueles que jogam o jogo do poder e para ele é subserviente.