ESPECIAL XXXII: Odeio os indiferentes – por Siro Darlan

DESTAQUESESPECIALESPECIAL XXXII: Odeio os indiferentes – por Siro Darlan  MAZOLA10 horas ago 0  8 min read  22667

Por Siro Darlan –

Série Presídios XXXII.

Como podemos continuar indiferentes diante desse crescente aumento da população de presos predominantemente jovens e negros no Brasil. Segundo o 17º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública o número de presos no Brasil triplicou em vinte anos. Daria para encher dez Estádios do Maracanã, embora a capacidade prisional brasileira é de apenas 7,5 estádios. Isso fica muito claro pelos depoimentos prestados pelos presos na Série Presídios. Segundo o Anuário em 2022, o sistema atingiu o número de 833.900 pessoas presas no Brasil. É como se toda a população de João Pessoa-PB, cidade considerada como o melhor padrão de vida da América latina, estivesse presa atualmente com seu 833,9 mil pessoas que vivem nessa bela urbe.

Registra-se, portanto uma superpopulação de 40% acima da capacidade do sistema prisional, o que transforma a Lei de Execução Penal em letra morta, que teria como objetivo: “efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Embora a Lei assegure em seu artigo “Art. 3o Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”, esse mandamento legal está longe de ser realidade.
A despeito do legislador ter fixado que “Art. 5o Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal”, o Estado resolveu organizar a classificação por facções, oficializando as organizações criminosas e reconhecendo seu papel de comando sobre os presos e sobre o próprio sistema penitenciário. Não contente com isso resolveu reunir a “nata da malandragem” nos presídios federais propiciando que o crime fosse organizado não apenas nas grandes capitais, mais levado para todos os rincões do Brasil.

Vivemos uma grande contradição moral. Enquanto o Estado prende pessoas que transgrediram as leis, é o próprio Estado Brasileiro que se encontra em “estado de coisa inconstitucional” o que descumpre todas as regras de garantia da dignidade da pessoa humana. Enquanto a lei fixa parâmetros e determina que:

Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único.

São requisitos básicos da unidade celular:

a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana;

b) área mínima de seis metros quadrados.

O sistema prisional brasileiro enfrenta um desafio monumental em relação à superlotação. A superlotação tem causado consequências dramáticas para a população carcerária, afirma o Anuário, como condições insalubres, falta de acesso a recursos básicos e dificuldades na inserção de efetivos programas de ressocialização. Os depoimentos da Série Presídios apontam convívio com pragas e ratos que causam as mais variadas doenças por falta de atendimento adequado à saúde dos presos. Tuberculose, leptospirose, lepra, Aids, são algumas das doenças mais comuns que transforma a pena de privação de liberdade em pena de morte.

Embora a Lei determine que a prisão deve ser a última opção e o CNJ tenha propagado o monitoramento eletrônico e as demais cautelares como alternativas ao encarceramento, as decisões judiciais arraigadas ao punitivismo que estimula o preconceito contra negros e pobres tem predominado. Em 2019, 16,8 mil presos tinham monitoramento eletrônico, o que representava 2% da população prisional. Já em 2022, esse número aumentou para 91,4 mil (11% do total dos presos).

O racismo estrutural com predominância de juízes e juízas brancas tem predominado, e em razão do preconceito e da “Guerra ás drogas”, que na verdade é uma guerra contra as pessoas, promoveu entre 2005 e 2022, um crescimento de 381% da população negra encarcerada. Em 2005, 58% do total de presos eram negros; já em 2022, esse percentual subiu para 68%, o maior da série histórica. “O sistema penitenciário deixa evidente o racismo brasileiro de forma cada vez mais preponderante. A seletividade penal tem cor”, afirma o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A falta de estrutura nas prisões para atender mães e recém-nascidos é realidade no Brasil. Nos 316 presídios femininos ou mistos, há apenas 51 berçários e 10 creches. Apenas Maranhão, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo contam com creches nas unidades prisionais. Além disso, 67 estabelecimentos têm cela adequada ou dormitório para gestante, o que representa 21% dos presídios femininos e mistos.

O perfil dos presos brasileiros é de jovens e negros. Enquanto jovens de até 29 anos representam 43% da população carcerária, os negros totalizam 68% das pessoas privadas de liberdade. O Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra ainda que este é também o perfil da grande maioria das vítimas de mortes violentas intencionais.

Em recente lançamento de seu livro no Brasil, a ativista norte-americana Ângela Davis, destacou que: “Quando começamos a falar sobre abolicionismo há 20 anos, nunca imaginamos que poderíamos ver o esse tema no debate público. Nunca imaginei que vivenciaria as consequências desse trabalho”, afirmou, destacando o papel dos ativistas neste processo.

Por seu ativismo na defesa da causa dos negros e do combate ao racismo foi vítima de lowfare, tendo sido perseguida, ela entrou na lista do FBI dos dez mais procurados do país e foi presa em 1970, acusada de sequestro, assassinato e conspiração. Depois, foi absolvida das acusações. A campanha por sua liberdade eternizou a imagem da jovem de cabelo black power e punho cerrado que se tornaria ícone do feminismo negro e do abolicionismo penal, uma teoria que denuncia o caráter racista e classista da justiça criminal e a falência do sistema carcerário para se lançar na busca outras formas de resolução de conflitos, de garantia da segurança e de liberdade que desafiem esses sistemas.

O Ministro de Direitos Humanos Professor Silvio Almeida recebeu na íntegra os depoimentos dos presos ouvidos na Série Presídios da Tribuna de Imprensa Livre, e anunciou que irá visitar presídios e unidades do sistema socioeducativo de todo país a partir do próximo mês. Batizada como “Caravana de Direitos Humanos”, a iniciativa será realizada em parceria com a sociedade civil e órgãos do sistema de prevenção e combate à tortura. Afirmou Almeida que está preocupado com “reiteradas denúncias de fome forçada” e “ausência de água potável” nas unidades.

A ideia é mobilizar atores locais e até mesmo ministérios do governo para o enfrentamento das violações de direitos humanos.

Leia também:

1- A roubada dos presídios federais – por Siro Darlan e Raphael Montenegro

2- Para que servem os presídios? – por Siro Darlan

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9-  O Dia do Detento – por Siro Darlan

10- Para além das prisões – por Siro Darlan 

11- Justiça Restaurativa – por Siro Darlan 

12 – Alternativas à privação da liberdade – por Siro Darlan

13- Quem nasceu primeiro o cidadão infrator ou o Estado criminoso? – por Siro Darlan

14- A ponte para a liberdade – por Siro Darlan 

15- O Estado Criminoso – por Siro Darlan

16- O Estado Criminoso II – por Siro Darlan

17- O Estado Criminoso III – por Siro Darlan 

18- O Estado Criminoso IV – por Siro Darlan

19- O Estado Criminoso V – por Siro Darlan 

20- O Estado Criminoso VI – por Siro Darlan 

21- O Estado Criminoso VII – por Siro Darlan 

22- O Estado Criminoso VIII – por Siro Darlan 

23- SEAP no banco dos réus – por Siro Darlan 

24- Homicídios – por Siro Darlan 

25- Desvio de dinheiro público / alimentos superfaturados / enriquecimento ilícito – por Siro Darlan

26- Trabalho em condições análogas à escravidão / prevaricação / omissão de socorro – por Siro Darlan

27- Vítima da SEAP II – por Siro Darlan

28- O preso perfeito padrão SEAP – por Siro Darlan

29- Sentenciando pela cor da pele – por Siro Darlan

30- Arquipélago Gulag brasileiro – por Siro Darlan

31- A guerra aos povos pobres e negros com nome de “guerra às drogas” – por Siro Darlan

SIRO DARLAN – Advogado e Jornalista; Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Ex-juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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