Manifestação em comemoração ao 27º aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em Salvador (BA), em 2017. (Jornal da USP/Foto: Secom)POLÍTICAOs juízes face ao novo direito da criança e do adolescente – por Vânia Morales Sierra MAZOLA, 1 dia ago 0 37 min read 18272
Por Vânia Morales Sierra –
O juiz próximo a sociedade, representante na defesa do Estatuto, ator político na disputa pela promoção de direitos junto ao Executivo expressa um outro formato de Justiça para crianças e adolescentes. Este artigo vai tratar da percepção que têm os juízes da infância e da juventude de seu trabalho e as dificuldades encontradas para a execução do Estatuto.
A discussão acerca dos direitos da criança e do adolescente tem sido travada ao redor da questão da assistência e da aplicação das medidas sócio-educativas. Contudo, o processo de redemocratização que envolveu a Justiça, conferiu novas atribuições aos juízes que necessitam desempenhar funções inéditas para o cargo. O juiz próximo a sociedade, representante na defesa do Estatuto, ator político na disputa pela promoção de direitos junto ao Executivo expressa um outro formato de Justiça para crianças e adolescentes. Entretanto, uma nova tendência se observa, a demanda por serviços à infância e à juventude continua a buscar apoio nos Juizados. Na falta das instituições vinculadas ao Executivo bem como de programas sociais destinados a eles, os Juizados vão se transformando numa mega instância de assistência social com programas implantados pelos juízes. Por conseguinte, já não se reconhece mais o limite entre os juizados, o social e o político.
A aplicação do Estatuto numa sociedade que conhece pouco seus direitos atinge diretamente os juízes que tentam garantir o cumprimento da lei resistindo ao recuo do Poder Executivo. É neste sentido que a atuação dos juízes merece reflexão. Que tipo de trabalho deve desenvolver o juiz da infância a fim de garantir o exercício da cidadania infantil?
Este artigo vai tratar da percepção que têm os juízes da infância e da juventude de seu trabalho e as dificuldades encontradas para a execução do Estatuto. Foram selecionadas reportagens de jornais, informações da Internet, artigos escritos pelos juízes titulares da 1a e 2a Vara da Infância e Juventude e a entrevista aplicada a ambos.
1) Um Novo Perfil do Juiz da Infância e da Juventude
A integração da criança e do adolescente é um problema considerado de importância fundamental para os magistrados. A atração exercida pelo tráfico de drogas e a miséria em que estão submetidas as famílias são itens comuns em que se pautam as preocupações dos juízes da infância e da juventude. O enfrentamento dos problemas de ordem política e social envolve o cotidiano dos juizados. Neste sentido, as atribuições dos juízes ultrapassam a função assistencial e judiciária, pois eles estão sendo levados a abandonar a cômoda posição de administradores do direito, passando a utilizar da autoridade da Justiça para cobrar a efetivação dos direitos da criança e do adolescente. A doutrina da proteção integral transforma os juízes em atores políticos legítimos na luta pela execução do Estatuto, pois ao aplicar as medidas em prol da “cidadania infantil”, eles muitas vezes são levados ao enfrentamento direto com a classe política. A garantia dos direitos à criança e ao adolescente depende da mobilização de diversos agentes, inclusive do Poder Judiciário, a fim de transformar a luta pelo exercício da cidadania infantil numa questão de prioridade na agenda política governamental.
Para o desempenho destas funções, um novo perfil está sendo exigido do juiz, a expectativa é de que ele seja uma pessoa ativa, sensível e engajada nos movimentos da sociedade civil a favor dos direitos da criança e do adolescente. Este juiz, protagonista na causa dos direitos da criança e do adolescente, incita a sociedade a se organizar em prol da defesa dos direitos da criança e do adolescente, cobra dos pais responsabilidade, desenvolve uma pedagogia cívica e judiciária. A primeira, todas as vezes que consegue motivar a sociedade civil a respeitar o Estatuto e a colaborar na sua efetivação, a segunda quando é preciso aplicar a lei impondo limites no relacionamento com crianças e adolescentes.
Os juízes do Rio de Janeiro, além do esforço pela criação de convênios, participam de eventos realizados a favor dos direitos da criança e do adolescente, vão às escolas e falam diretamente aos alunos e professores. Eles esclarecem os estudantes a respeito do direito de contestar os métodos de avaliação, de cobrar da escola a freqüência dos professores, enfim, de exigir dos profissionais o tratamento aos alunos como “sujeito de direitos”. O trabalho de conscientização da sociedade é feito pelo esforço de divulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, através dos meios de comunicação e da proximidade com as organizações da sociedade civil.
2) O Juiz e a Política
Os promotores de justiça ajuízam ações a favor dos direitos da criança e do adolescente contra a prefeitura, mas a responsabilidade fica nas mãos dos juízes que podem julgá-las procedentes ou não. Uma das ações do Ministério Público acatada pela juiz Siro Darlan, no ano de 1996, intimava a prefeitura a cumprir o Estatuto, o que significava acolher as crianças nas ruas, construir escolas, creches e atender as famílias carentes num prazo máximo de 120 dias. Na época, o prefeito Cesar Maia recorreu da decisão e pediu a remoção compulsória do cargo do juiz. Apesar da reação, o juiz Siro Darlan avaliou a situação de forma positiva, enfatizando que apesar do prefeito ter recorrido, ele implementou vários dos programas indicados.[1]
O principal desafio do juiz, atualmente, é fazer cumprir o artigo 227 da Constituição Federal, que determina para a família, a sociedade e o Estado o dever de assegurar com absoluta prioridade os direitos da criança e do adolescente. Em declaração à CPI da Câmara Municipal[2], que investiga o tratamento dado pela prefeitura à população de rua, o juiz Siro Darlan confirmou a denúncia de que a Prefeitura do Rio não possui programas voltados para aquela população e informou que existem 70 ações contra o Município pelo não cumprimento da legislação de atendimento à criança e ao adolescente.[3] Neste caso, temos nitidamente a demonstração de um conflito instaurado entre os Poderes.
Segundo o juiz, não há problemas de sua intervenção incidir sobre a política; ele considera que julgar é sempre um ato político e que o seu trabalho é fazer cumprir a lei. Neste sentido, a mudança que ocorreu se deu ao fato de que o juiz passou a julgar questões que antes não envolviam o Poder Judiciário.
O juiz reconhece que a ação civil pública ampliou a atribuição do Ministério Público e o poder de decisão do juiz sobre a política. Mas isso não significa que o juiz tenha um poder executivo, ele realiza um ato político ao fazer com que a lei seja cumprida, mas não é ele quem legisla e nem é o responsável pela sua execução. Segundo o Dr. Siro,
“Isso é porque a lei é um ato político, ela é formulada por políticos. Ao juiz cabe apenas fazer cumprir a lei formulada por políticos. E quando a lei prevê a obrigação do Poder Público implementar políticas públicas e não o faz, a decisão do juiz que determina ao poder publico a construir creches, a abrir vagas em berçários para tratamento neonatal, a construir escolas, a ter vagas nas escolas para todas as crianças, é um ato político. A sentença do juiz é um ato político porque ela corporifica uma lei que é política e oriunda dos políticos.”
Além de considerar um ato legal e político e dessa forma conveniente, o juiz entende que a execução das políticas públicas cabe ao Poder Executivo e não ao Poder Judiciário. O fato de atualmente os juizados estarem implementando projetos sociais significa que a Justiça está tentando preencher a ausência do Poder Executivo, efetuando serviços considerados essenciais ao trabalho dos juizados. Apesar da implantação de inúmeros projetos na Primeira Vara da Infância e Juventude, o Dr. Siro reconhece que este não é um trabalho que caiba ao juizado desenvolver, pois deveria ser implementado pela prefeitura. O problema, no entanto, é que se o juizado não faz, não há como levar adiante a proteção à criança e ao adolescente :
“Isso é uma deformação dos juizados. O juizado não é para fazer essas coisas mas infelizmente nós temos que dar soluções as questões emergenciais e não podemos esperar o Poder Público se não as pessoas morrem, as pessoas se matam, as pessoas maltratam mais ainda as crianças. Então, nós temos que criar e ser inventivos e criar programas como o banco de empregos que nós temos aqui, como a escola de pais, como serviço de localização de crianças desaparecidas. Nós temos aqui um leque… nós empregamos esses meninos. Esses pais da escola de pais nós fizemos um convênio com o Tribunal de Justiça para empregar no Tribunal de Justiça, vão trabalhar no Tribunal de Justiça. Fizemos convênio com uma ONG para colocar meninos na engraxataria. Nós temos convênios com cursos de inglês e curso de informática para dar bolsas para estes meninos. Nada disso é ação do judiciário, mas são ações pontuais, mas são projetos implantados pela iniciativa dos próprios juízes porque se a gente não faz isso, não tem alternativa, não tem retaguarda.”
O Estatuto não destacou claramente a função do Poder Executivo no que diz respeito a vinculação com o trabalho dos juizados. O CMDCA, segundo o Dr. Siro Darlan, funciona de forma precária, os representantes do governo não têm poder de decisão, o que inviabiliza o prosseguimento das deliberações. Também falta apoio ao trabalho dos Conselhos Tutelares que ainda hoje não funcionam de acordo com a lei, pois estão mal localizados e não possuem infra-estrutura adequada a realização do trabalho.
3) Dilemas de uma Parceria Difícil: Juizados, Sociedade Civil e Poder Executivo
A inquietação dos juízes da infância reflete a pressão por eles sentida de ter que levar a lei onde os direitos não chegaram. Num esforço em cumprir o Estatuto, os juízes retiram do Judiciário e até do próprio bolso o financiamento para as medidas de proteção ou sócio-educativas. Esta medida é comum em diversos juizados: a equipe técnica e os funcionários se envolvem com os problemas da criança ou do adolescente e acabam patrocinando o atendimento. As queixas mais comuns referem-se à falta de abrigos e à falta de vale transporte para garantir o trabalho de acompanhamento da equipe técnica, já que as famílias não têm o dinheiro da passagem para levar os filhos aos juizados.
No Rio de Janeiro, os juizados conseguiram estabelecer inúmeros convênios com instituições privadas e públicas. Ainda assim a carência é grande e recai sobre os juizados a implementação de políticas públicas. O problema, contudo, não é de considerar estes convênios no juizado, mas de saber que as iniciativas ocorrem porque o Executivo não comparece com a oferta suficiente de instituições de assistência às crianças e aos adolescentes.
4) Os Juizados da Infância e da Juventude: competências, estrutura de funcionamento e projetos desenvolvidos
O Estatuto é um programa que abre uma perspectiva de realização no futuro e depende, para sua execução, do esforço conjunto dos juizados, da sociedade e do Poder Executivo. Na ausência de apoio do Executivo e da mobilização da sociedade, resta ao juiz tentar desenvolver estratégias de cooperação para execução da lei. Distantes desta luta, os juízes sequer poderão aplicar as medidas adequadas de proteção à criança e ao adolescente pois até as instituições, como os abrigos, por exemplo, não são criadas em número suficiente pelo Poder Executivo. Esta prática interfere diretamente no trabalho dos juízes, eles sentem necessidade do apoio da sociedade, principalmente do serviço das ONGs para a execução das medidas proferidas.
Na capital do Rio de Janeiro existem duas Varas da Infância e da Juventude, a 1a Vara se incumbe dos procedimentos de prevenção, mediação, defesa de interesses, e julgamento de todos os conflitos e impasses que envolvem crianças e adolescentes, com exceção dos processos relacionados ao adolescente em situação infracional, que são de competência da 2a Vara.
O juiz titular da 1a Vara é o Dr. Siro Darlan. Ele conta com a assessoria de uma equipe interdisciplinar composta de Comissários de Justiça, Psicólogos, Assistentes Sociais, Médicos, dentre outros técnicos e profissionais de apoio. A estrutura interna está organizada da seguinte forma: Cartórios, Divisão Administrativa, Divisão de Fiscalização, Serviço de Plantão, Serviço de Fiscalização, Serviço de Integração de Obras Assistenciais, Canto da Perda e da Procura, Informática da 1a VIJ, Serviço de Estatística, Divisão de Serviço Social, Núcleo de psicologia, Centro de Estudos e Pesquisas, Assessoria de Planejamento e Comunicação, Banco de Empregos, Curso e Acompanhamento (BECA), Biblioteca, Núcleo da Escola de Pais.
A estrutura do juizado é ainda mais ampla. Visando maior proximidade com o usuário, foram criados Postos Avançados que estão localizados na Rodoviária, no Aeroporto, na Barra da Tijuca, no Méier e em Realengo. Existem, inclusive, os Postos Eventuais que são instalados nos locais onde estejam acontecendo eventos de grande acorrência da população infanto-juvenil. Há também um serviço de Plantão Itinerante que, em ônibus especiais, acolhe crianças e adolescentes que se encontram em situação de risco nas ruas.
Com objetivo de tornar efetivo o trabalho, o juizado vem realizando parcerias com entidades governamentais e não governamentais, com Conselhos Tutelares, Conselhos de Direitos, OAB, etc. Além disso, o Ministério Público e a Defensoria Pública mantém relação estreita com o juizado, e ambos funcionam no mesmo prédio.
Existem ainda Projetos Especiais que, dentre outros objetivos, pretendem a reinsersão familiar das crianças e adolescentes que se encontram sob risco pessoal e social nas ruas da Cidade do Rio de Janeiro. Os Projetos da Primeira Vara são: Projeto BECA: tem como principal objetivo favorecer a entrada do adolescente no mercado de trabalho. Nele, estão incluídos: (1) o projeto Restaurante Escola da Primeira Vara da Infäncia e da Juventude, (2) Jovem Engraxate, (3) Mestre-Sala e Porta-Bandeira, (4) Meninos a Postos. Para participar o adolescente deve comparecer ao juizado, de preferência acompanhado por seu responsável, fazer a inscrição e marcar uma entrevista. Ele será orientado e encaminhado oficialmente para o curso ou para um estágio-laborativo que corresponda ao seu interesse. Será feito um acompanhamento durante três meses. Ele e seus familiares e/ou responsáveis poderão participar de atividades de suporte psico-pedagógico.
Além do BECA, existem outros projetos: (5) Escola de Pais, (6) Família Solidária, (7) Cooperativa dos Trabalhadores Ambulantes Lanches, (8) Cidadania nas Escolas, (9) Lanche Feliz, (10) PAPI (Posto Avançado “Proteção Integral”, (11) Jovem Colaborador, (12) CEPUAD (Centro de Prevenção ao Uso e Abuso de Álcool e Drogas), (13) Projeto Resgate (14) Almoçando com o Juiz, (15) Escola Solidária, (16) Projeto Cartilha “Tudo o que você precisa saber”, (17) Projeto Cantina Saudável, (18) Justiça nas Escolas . Todos estes projetos estão explicados no anexo 2.
A 2ª Vara da Infância e da Juventude é competente para julgar adolescentes (pessoas entre 12 e 18 anos de idade), que praticam atos infracionais, impor medidas sócio-educativas e fiscalizar a sua execução. A Delegacia de Polícia da Criança e do Adolescente situada ao lado do juizado, notifica os atos infracionais e encaminha ao Juízo da 2a Vara da Infância e Juventude ou ao Ministério Público para a instauração do processo legal. A exceção ocorre nos casos apreendidos em flagrante, que podem ser julgados no mesmo dia por autoridade judiciária, através do Plantão Interinstitucional.
A 2a Vara tem competência para julgamento de todos os adolescentes que praticam atos infracionais e também para controlar as medidas impostas à crianças infratoras (art. 105 da Lei 8069/90) executadas pelos Conselhos Tutelares (art. 136, I, da Lei 8069/90) e aos próprios adolescentes infratores (art. 112 da mesma Lei), após o devido processo legal (arts. 171 e seguintes do mesmo diploma legal).
A 2a Vara da Infância e da Juventude, cujo juiz titular é o Dr. Guaracy Campos Vianna, conta com uma equipe de apoio interprofissional composta de comissários de justiça efetivos, assistentes sociais, psicólogos, serventuários da justiça, dentre outras categorias funcionais, que integram os vários setores de atendimento. Sua estrutura comporta os seguintes órgãos: Direção Administrativa, dois cartórios, Centro de Comunicação, Estudos, Capacitação, Pesquisas, Divulgação e Estatísticas, um Departamento de Processamento dos Feitos de Medidas Sócio-educaticas (DEMESE), Serviço de Psicologia, Serviço de Controle Individual das Medidas Sócio Educativas, Serviço Médico, Serviço Social, Serviço de Fiscalização, Inspeção e Documentação, Serviço de Integração Multidisciplar e Encaminhamento à Profissionalização e Apoio Sócio-educativo, Serviço de Integração Multidisciplinar e Encaminhamento à Profissionalização e Apoio Sócio-educativo, Serviço de Operações Externas, Serviço de Pessoal e Protocolo.
São projetos implantados pela 2a Vara: (1) Apadrinhamento, (2) Antidrogas, (3) Em Busca do Trabalho Educativo, (4) Iniciação ao Trabalho, (5) Encontro de Pais, (6) Jovem Cidadão Brasileiro, (7) Jovens Pela Paz, (8) Núcleo de Orientadores de Liberdade Assistida, (9) Interação, (10) Reintegração Social, (11) Egressos.
Os juizados guardam o aspecto de uma Justiça informal – as salas de audiência são simples, um computador, uma mesa grande onde se senta o juiz, algumas cadeiras. A audiência com o juiz é um espaço de dramatização, o juiz desempenha a sua função demonstrando seriedade, relacionando a necessidade de respeito à lei e a importância da intervenção educativa. Ele estabelece a comunicação tomando para si o controle da audiência e a lembrança dos deveres, a cobrança de responsabilidade e a obrigação de considerar o direito.
A necessidade de ter que “dizer o direito” limita o poder do juiz e insere o adolescente numa nova situação: a sala de audiência, a presença do advogado, a relação do fato com o direito, a consideração com o depoimento dos pais e o relatório dos especialistas. Uma estrutura organizada para uma fase transitória, de uma justiça que ainda não funciona como a dos adultos, mas que cobra uma resposta mais jurídica do que educativa. A autoridade judiciária age sobre o adolescente infrator avaliando a gravidade do ato, mas levando em consideração o adolescente como sujeito em situação peculiar de desenvolvimento, quer dizer, um sujeito que tem direito à uma intervenção educativa mesmo quando comete infração.
5) Juízes da Infância Diante a Situação das Crianças e das Famílias
Os defensores do Estatuto consideram uma grande vitória conseguir impedir o juiz de retirar a criança da família alegando a falta de condições materiais para a criação. De fato, considera-se um abuso o juiz separar a criança da família por causa da situação de pobreza em que ela se encontra. Todavia, pela falta da garantia da proteção integral, determinadas famílias procuram os juizados com a intenção de entregar seus filhos alegando exatamente a falta de condições materiais para a criação. Algumas mães na consciência de que não poderão oferecer a seus filhos as condições necessárias de bem-estar, começam a desejar que eles sejam educados por outras famílias com melhores condições financeiras. A publicação do promotor de Justiça Fernando Martins Zaupa, no site da ABMP, serve como ilustração:
… “a mãe, “por motivos de ordem econômica e social”, bateu às portas do Judiciário com a finalidade de ver seu filho amparado por uma família que lhe dê melhores condições de vida (afetiva, social, econômica e outras mais que intimamente a influenciaram em sua decisão).
Não houve abandono (o que ensejaria a destituição do pátrio poder como forma de sanção), mas sim a manifesta vontade da mãe biológica em ver seu filho entregue a um mundo que, aos seus olhos, certamente lhe parece menos injusto que este ao qual vem a passos oblíquos sobrevivendo.”
Percebe-se a dificuldade que tem a sociedade de entender o novo direito. A lei mudou, mas a situação das famílias mantendo-se a mesma, tende a reproduzir as práticas do passado. É como se dissesse aos pais que eles não têm mais o direito de entregar seus filhos ao juiz por causa da pobreza.
Além desses problemas, os juízes também decidem a respeito da violência doméstica contra a criança e o adolescente, os maus tratos e o abuso sexual. O problema acentua-se porque o afastamento ou a prisão dos pais agressores muitas vezes significa também a suspensão do sustento da família. Por outro lado, ao decidir pelo afastamento do agressor quem poderá impedir o seu retorno? Diante destas questões, o encaminhamento a um abrigo parece ser a solução mais adequada. Apesar de não ser considerado um local apropriado, é para lá que vão boa parte destas crianças.
A procura pelos abrigos tem sido crescente. Os abrigos foram construídos para serem instituiçoes provisórias. No entanto, estão recebendo crianças retiradas das famílias pelos juizados. Estas deveriam estar num local reservado à adoção. O problema é que o Estatuto não previu ao Executivo a responsabilidade com a prestação dos serviços que auxiliem o trabalho dos juizados.
Todavia, o Juizado luta pelo desempenho de um trabalho mais eficaz. Na opinião de um dos juízes da 1a Vara da Infância e Juventude, Dr. Leonardo de Castro Gomes, o juizado não é uma instituição omissa com relação ao problema da infância, pois as iniciativas não se resumem ao julgamento dos casos de violação, eles oferecem também apoio educativo e material as famílias:
“A vara conta com aproximadamente 8500 casos em curso de criança e adolescente negligenciados pelos pais e uma média de 500 novos casos por mês, seja por espancamento, falta de assistência educacional ou mesmo exploração na mendicância. Destes procedimentos, resultam a aplicação de sanções que variam de uma advertência a perda do poder familiar de colocação da criança em família substituta (mais de 10 processos de adoção por mês tem origem nestes casos). Quinhentas famílias que antes exploravam crianças nas ruas foram obrigadas a participar da Escola de Pais da 1a VIJ, programa reconhecido pela ONU que obtém êxito e inclusão no mercado de trabalho.” (O Globo, 28/01/2003)”
Desta forma, os juizados vão realizando um trabalho que, em nome do direito da criança e do adolescente, passa incutir na família valores que devem produzir mudanças na atitude dos pais com relação aos filhos. Assim, os juizados vão atuando no sentido de conter os efeitos da desagregação. A reunião da assistência material e educativa serve como um auxílio às famílias que se encontram completamente desamparadas. Como não se retira mais a criança da família por causa da pobreza, surge uma alternativa de intervenção que se realiza a partir da iniciativa do Poder Judiciário.
6) Representações da Infância no Trabalho dos Juizados
As mudanças na representação da infância trazem para a Justiça regras contraditórias que fazem com que os juízes passem a se posicionar como intérpretes desta noção de “cidadania infantil” presente na lei. No entanto, torna-se difícil julgar quando é preciso punir e ao mesmo tempo garantir as condições do bem-estar da criança, que em boa parte dos casos teve seus direitos violados dentro do que deveria ser o seu lar. Neste trabalho de avaliação da situação da criança, a participação dos profissionais tem sido considerada de importância fundamental. Por se tratar de crianças e adolescentes, pessoas em estado peculiar de desenvolvimento[4], os juízes buscam no trabalho executado por psicólogos e assistentes sociais informações que servem de apoio às suas decisões. Do contato próximo com estes profissionais, eles desenvolvem um conhecimento sobre a criança e o adolescente, que logo se ajusta à necessidade de aplicação da lei.
Com relação ao auxílio dos profissionais, o problema não é tanto da influência deles na aplicação da Lei, mas de sua metodologia ou da forma como realizam o relatório ou desenvolvem o estudo de caso. Uma “criança cidadã”, como querem os estatutistas, necessita de uma nova abordagem, muito mais ampla, baseada em informações que podem ser recolhidas nos lugares nos quais a criança freqüenta, por exemplo, a escola, os abrigos, as ONGs, etc. Nestas instituições e não somente nas famílias, estão pessoas responsáveis pela criança mas que não são chamadas a falar sobre elas. Não é exigido o relatório do professor que sempre tem algo a dizer do comportamento da criança na escola, da sua freqüência as aulas, da participação nas atividades educativas e do interesse de sua família por seus estudos. Das instituições pelas quais a criança passou nada é solicitado. O que se sabe é resultado do atendimento com o psicólogo e com os assistentes sociais que realizam visitas e fazem entrevistas com as famílias. Da mesma forma para o adolescente infrator: se ele fugiu do abrigo, se participou em algum projeto nas ONGs, se freqüenta a escola, ninguém é chamado a falar sobre ele. A responsabilidade é praticamente dele mesmo, pois nem seus pais são obrigados a comparecer à audiência.
Enfim, os juizados da Infância e da Juventude são espaços criados para resolução de conflitos que envolvem crianças e adolescentes mas que, diferentemente da Justiça para os adultos, ligam a prática dos profissionais ao trabalho de proteção às crianças e aos adolescentes.
7) O Juiz, a Lei e as Classes Sociais
Os defensores do Estatuto reclamam que a doutrina da proteção integral não foi compreendida por grande parte da sociedade que ainda pensa que juiz da infância deve agir somente sobre o “menor” e que a classe média não inflige os direitos da criança e do adolescente. Seria necessário, então, verificar se existe de fato alguma diferença com relação à classe social e à violação dos direitos da criança e do adolescente. Segundo o Dr. Siro Darlan,
“Há uma noção preconceituosa de que o Estatuto da Criança e do Adolescente existe só para crianças pobres, sem pais, crianças destituídas de família e não é. O Estatuto da Criança e do Adolescente é para todas e qualquer criança. Então, quando você encontra um pai de adolescente de classe média que faz uso de bebida alcoólica numa boate, o pai é chamado para prestar conta a Justiça porque está sendo negligente no exercício do pátrio poder. Esses pais resistem e dizem “não este filho é meu”. Como o próprio Manuel Carlos na novela Laços de Família ele reagiu dizendo “não a filha é minha, eu coloco para ela trabalhar na novela que eu quiser, ninguém tem nada a ver com isso!” Ele está errado porque o direito da criança e do adolescente visa a proteção integral a todas as crianças e adolescentes até aos dezoito anos. Independente da classe social.”
O juiz demonstra a resistência por parte de setores das classes médias e alta que tentam se situar acima da lei, escapando dos problemas da judicialização, ou como afirmou o Dr. Siro Darlan,
“Judicialização é pouco, seria assim : aos pobres a lei, aos ricos o privilégio. As elites entendem-se acima da lei ou fazedores da lei. A lei são eles. E como o princípio da aplicação da justiça exige igualdade no tratamento das partes o juiz não pode admitir essa forma de diferenciação sob pena de desmoralizar a aplicação da própria lei. Se você direciona a aplicação da lei com rigor para um segmento da sociedade e com negligência para outro segmento você desmoraliza a aplicação da lei, porque aquilo vai ser percebido por aquele que recebe a lei com rigor, porque a lei é aplicada de uma forma para uns e de outra forma para outros”
O Dr. Siro Darlan pretende mostrar que o controle sobre pais negligentes deve ser geral e não apenas destinados aos pobres. Ele afirma ser “escandaloso os casos de violação dos direitos da criança e do adolescente nas classes médias”, pois existem muitos pais negligentes, alguns chegam a permitir que os filhos façam uso da maconha. O juiz referia-se a reportagem publicada na revista Época de 14/10/2002, que apresentava uma pesquisa realizada pelo Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) mostrando que no Rio de Janeiro 14% dos pais permitem aos filhos o consumo de maconha dentro de casa.
Mas os casos de violação na classe média não se reduzem aos problemas relacionados à permissividade, o juiz afirma que tem aparecido casos de violência doméstica, porém num número menor se comparado ao dos pobres. Todavia, os problemas com a criança ou o adolescente não parecem estar necessariamente vinculados a classes sociais, mas a questão da família, a falta de dedicação e orientação dos pais que acabam perdendo autoridade e controle sobre a educação dos filhos. Segundo o Dr. Siro:
“Há um relaxamento, há uma negligência, há também uma impotência dos pais que acabam deixando os filhos criados pelo mundo. Isso é devido ao trabalho dos pais, a uma negligência, a falta de cuidados com a criança. Na classe alta a criança é entregue a babá, ao motorista, ao professor. A influência do pensamento dos pais sobre os filhos é cada vez menor ou frágil a ponto de ser desmoralizada. Já as classes pobres eles são renegados ao abandono, por isso as crianças formam núcleos familiares nas ruas, se você conversar com uma criança de rua ela vai apontar esse é meu irmão, esse é meu primo, esse é meu tio, esse é meu pai. São meninos que criam um núcleo familiar porque eles valorizam o núcleo familiar, tanto que eles criam o núcleo familiar substituto, eles reproduzem, mas eles rejeitam a família que os agridem que os maltratam”.
Na opinião do juiz, a violação dos direitos da criança e do adolescente está relacionada com a ausência da política do Estado, de uma política pública de qualidade destinada a este segmento e também com o problema da negligência familiar, este considerado de difícil combate já que a Justiça pode cobrar dos pais a guarda, mas nada pode fazer com relação a necessidade afetiva da criança. Talvez este o problema mais sério que a sociedade tem evitado enfrentar, ou seja, pais que não suportam seus próprios filhos! Se antes não poderíamos responsabilizar as famílias devida a sua precária condição social, atualmente a ampliação dos direitos da criança e do adolescente tem mostrado que a violação ocorre em todas as classes sociais. Nas classes médias, em número menor pelo esforço dos pais em garantir aos filhos as condições de bem-estar social, entre os pobres, em número maior, devido a falta total de condições mínimas de dignidade de vida.
8) O Juiz e o Adolescentes em Conflito com a Lei
O juiz titular da Segunda Vara da Infância e da Juventude, Dr. Guaracy, entende que o adolescente infrator é resultado de um problema social que impulsiona os adolescentes mais pobres às atividades associadas ao tráfico de drogas. Para o juiz a falta de oportunidades para estes adolescente é a principal causa do envolvimento deles com o tráfico.
Muitas vezes, os adolescentes não fornecem o endereço de seus familiares ao juizado, tentando proteger a família que também pode estar envolvida com o tráfico de drogas. Na pesquisa feita recentemente pelo Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde Social (IBISS) foi realizado um mapeamento abordando o trabalho infantil no tráfico[5], nos depoimentos verificou-se que havia famílias que ofereciam os adolescentes para trabalhar no tráfico de drogas. Das 232 comunidades pesquisadas na cidade do Rio de Janeiro foram encontrados 12.517 integrantes de idade entre 8 e 18 anos.
O perfil do infrator é do adolescente que mora próximo ao tráfico de drogas, vive mal acomodado, veste-se mal, não tem boa alimentação, baixo grau de escolaridade, enfim, é o excluído dos direitos de cidadania. Geralmente em casa falta a presença do pai. A participação nos projetos sociais oferecidos na comunidade é difícil, pois estes são seletivos e em pouca quantidade. A própria vida já não lhe parece algo de grande valor, pois ele sabe que corre o risco de morrer cedo e ainda assim prefere a aventura do tráfico de drogas a experimentar o sentimento de impotência diante da situação de pobreza e da falta de perspectiva. Muito precocemente ele dá início a uma carreira criminosa e com poucas chances de recuperação. Ao responder processo nos juizados, ele corre o risco de receber a medida de privação de liberdade, o problema, no entanto, é que os serviços de internação há muito já perderam credibilidade.
O Ministério Público freqüentemente ajuíza ações contra a prefeitura cobrando respeito ao Estatuto contra as instituições que cuidam dos adolescentes que tenham cometido falta grave. Por diversas vezes a televisão mostrou tentativas de fuga e rebeliões de adolescentes no país. Em 16/10/2002, o jornal do Brasil publicou a seguinte reportagem entitulada “Ministério admite falência no atendimento de jovens infratores“ :
“Ao enviar emendas ao Congresso Nacional para pedir reforço de R$ 129 milhões no orçamento do próximo ano, o Governo Federal, por meio do Ministério da Justiça, reconheceu a falência do sistema de reinserção social de adolescentes em conflito com a lei no país. “O sistema de recuperação é um vestibular para os presídios”, disse a diretora do Departamento da Criança e do Adolescente (DCA), Denise Paiva, confirmando a situação de degradação dos locais existentes para reeducação de jovens. Uma das atribuições do Ministério é coordenar a política de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente e fomentar o apoio a programas de atendimento aos jovens em conflito com a lei. (Jornal do Brasil, 16/10/2002).”
Apesar de tantos problemas que envolvem a questão do adolescente infrator, atualmente a medida privativa de liberdade não é a mais indicada. O Dr. Guaracy comenta que os casos de reincidência também são pequenos o que, na sua opinião, indica que o sistema funciona. No entanto, o juiz alerta para o fato de que mediante o crescimento do número de adolescentes em conflito com a lei e a carência de instituições de internação, pois as que existem já estão lotadas, não há como cumprir a partir da internação as condições mais adequadas a efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Em publicação no site do Juizado[6], o juiz assinala o seguinte:
“Destaque-se que no Rio de Janeiro, há mais de dez anos não se tem noticia da criação de uma única vaga a mais para a ressocialização do adolescente infrator. Talvez aí esteja a causa das superlotações e em última análise das rebeliões. Mas mesmo assim este Juízo tem, proporcionalmente, internado menos do que nos anos anteriores, e é preciso entender, como disse Tobias Barreto, que ” O Direito é um regulador, não do pensamento, porém das ações. Não se lhe deve, portanto, aplicar a medida teórica do verdadeiro, mas a medida prática do conveniente”. Educar é também impor limites, e estes devem ser compatíveis com a necessidade de evitar o retorno à atividade ilícita.
Dessa forma, as tentativas de se repassarem para o Poder Judiciário a responsabilidade pela execução das medidas sócio-educativas não podem, jamais, em termos globais e generalizantes, passar pela equívoca e precipitada afirmação no sentido de sinalizar serem inadequadas as internações, pois além de as mesmas serem em número reduzido (inferior a 15% do total das medidas sócio-educativas), tal juízo de valor só pode ser feito individualmente, em cada processo, antes do trânsito em julgado da decisão. Afirmação diversa em ouvidos não muito sensíveis pode gerar a falsa impressão de que o Julgador, o Ministério Público, ou a Defesa, só têm um alternativa para a ressocialização de adolescentes: a privação de liberdade. Não se dá conta outros interesses: gravidade do ato infracional, alto índice de reincidência, ausência de um trabalho eficaz na execução das outras medidas como a semiliberdade e liberdade assistida (também a cargo do Executivo) e principalmente a utilização prioritária de outras medidas, chamadas de alternativas, estas sim em maior número.”
De acordo com as estatísticas da 2a Vara em 1996, o juizado atendeu 3.317 casos de adolescentes infratores, no ano de 2000 este número pulou para 5.897, ou seja, em cinco anos houve um aumento de 43,7% de adolescentes submetidos a tutela do Estado. A maior parte destes adolescentes (88,9%) pertencem ao sexo masculino, o grau de instrução é muito baixo, 50% do total de adolescentes infratores têm idade entre 16 e 17 anos e 59,5% são primários.
9)A Instauração de Processo ao Adolescente Infrator
Atualmente, o juiz lança mão das medidas de proteção e das medidas socio-educativas. Os estatutistas imbuídos da concepção de que os adolescentes são “sujeitos de direitos” defenderam a limitação do poder do juiz sobre o adolescente infrator através das garantias processuais, que representam a introdução de uma nova prática no Direito para adolescentes no Brasil. A idéia de processo passou a adquirir destaque e a participar da própria definição de cidadania para eles. Mas como se dá esse processo?
Ao ser apreendido, o adolescente (maior de 12 e menor de 18 anos de idade) que cometeu ato infracional deve ser submetido ao devido processo legal, ele deverá ser apresentado ao Ministério Público (art. 179 do E.C.A.), que adotará uma das posturas referidas na Lei ( art. 180 do E.C.A). Não sendo promovido o arquivamento ou a remissão – hipótese em que o juiz analisará a viabilidade de homologação conforme art. 181 § § 1º e 2º do E.C.A., deve o Ministério Público oferecer a representação (art. 184 do E.C.A.), hipótese em que o juiz decidirá de imediato se o adolescente vai ou não permanecer internado provisoriamente (E.C.A. – art. 184). A autoridade judiciária que receber a representação é orientada a fazer a oitiva do adolescente e seu responsável – audiência de apresentação – , na forma de interrogatório, ato privativo do juiz, para melhor fundamentar a necessidade imperiosa da medida (art. 108 do E.C.A.).
Após a audiência de apresentação, havendo necessidade, será designada audiência de instrução e julgamento, que a Lei denomina de audiência de continuação (E.C.A., art. 186 § 4º). Porém, nada impede que seja realizada uma audiência única ou que o adolescente seja julgado na audiência de apresentação, quando não seria aplicada quaisquer das medidas restritivas de liberdade, até porque o Ministério público pode conceder remissão como forma de exclusão do processo (art. 126) e sugerir a aplicação de medidas (art. 127 do E.C.A.) sem qualquer audiência judicial. Havendo confissão, é possível o julgamento antecipado e a imposição de todas as medidas sócio-educativas, até mesmo internação e semiliberdade.
Imposta pelo juiz a medida sócio-educativa, seja ela definitiva ou provisória, seja através da decisão homologatória da remissão (art. 181 § 1º do E.C.A.), seja através de outra sentença, inicia-se a execução que é judicial. A execução das medidas é da responsabilidade do Poder Executivo. [7]
10) A Execução das Medidas Sócio-Educativas
A expectativa com relação às medidas sócio-educativas é de que a Justiça não deixe de cumprir sua função pedagógica. A punição identificada com a educação se por um lado confunde repressão com beneficio, por outro assegura a especificidade da Justiça para o adolescente, que é a de dar importância ao processo de desenvolvimento da personalidade do adolescente infrator. Neste sentido, o Estatuto herda do Código de Menores o objetivo da reintegração e passa a ser considerado uma lei permissiva ao adolescente. O principal problema, no entanto, é que a aplicação das medidas sócio-educativas esbarra nos mesmos problemas assinalados até o momento, a falta de apoio do Poder Executivo.
De acordo com o Estatuto, as condições à execução das medidas sócio-educativas devem ser providenciadas pelo Executivo. No Rio de Janeiro esta responsabilidade está destinada ao DEGASE (Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas), trata-se de um órgão que se responsabiliza pela aplicação das medidas encaminhadas pelos juizados, ele coordena as instituições que dão atendimento a todos os adolescentes envolvidos com a Justiça no Estado do Rio de Janeiro.
Em junho de 2002, o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, em carta aberta à comunidade, manifestou apoio às medidas de reestruturação do atendimento ao adolescente infrator, implantadas pelo DEGASE. Na carta consta a seguinte afirmação:
“As unidades de internação do DEGASE, historicamente, sofreram o abandono do Estado e da Sociedade. Hoje algumas entidade assemelham-se a verdadeiros “campos de concentração”, onde aos adolescentes são negados os mais essenciais direitos, tais como: direito à higiene pessoal, alimentação, à privacidade, à comunicação com seus familiares, direito a não serem agredidos pelos “agentes educacionais” (Representantes do Estado, responsáveis pela guarda, segurança e integridade dos jovens), além dos outros direitos constitucionalmente assegurados: saúde, educação, convivência familiar e comunitária, etc…”
Apesar do Estatuto ter destinado diferente tratamento ao adolescente pobre – que quando é considerado vítima é “socorrido” pelo conselho tutelar e quando designado como infrator pode ser levado as instituições de internação – o problema do atendimento destinado a eles permanece pois se prolonga o descaso do Poder Público e da sociedade com relação à situação em que eles se encontram. Mesmo a nova lei, que atribuiu aos problemas relacionados com a criança e o adolescente uma conotação de violação dos direitos, os problemas da inserção social continuam, pois as iniciativas são ineficientes. Por conseguinte, a questão da infância e da adolescência vai sendo traduzida, como um problema judicial, mais do que como uma “questão urbana”, propiciando o aumento da quantidade de jovens infratores e a demanda por instituições de internação.
O Dr. Guaracy, numa de suas publicações no site do Juizado da Infância e da Juventude[8] reage à acusação de aplicar em demasia a medida de internação, esclarecendo a sociedade que ela não é a mais aplicada. O juiz comenta a respeito da responsabilidade de sua função e da necessidade de seguir o que está definido no Estatuto, ou seja, a aplicação das medidas sócio-educativas em consideração a gravidade do ato. Ao fim, o Dr. Guaracy faz o seguinte comentário:
“A ausência de alternativas eficientes acaba tornando inevitável o segregamento, cada vez mais numeroso. É bom lembrar que, se projeta o número de seis mil adolescentes para serem julgados, ao longo do corrente ano, pela prática de atos infracionais somente no Município do Rio de Janeiro. Quantas vagas dispõe o Estado?”
O que se nega pela sociedade e pelo Estado, passa a ser cobrado pelas instituições de internação. Cada adolescente internado representa um gasto de mais do que 1000 reais por mês, um valor suficiente para criação das condições fundamentais de dignidade a qualquer adolescente. Mas além da falta de oportunidades que eles têm na sua trajetória de vida, ao ingressar nestas instituições sua situação se torna pior pois lá dentro além de não receber a educação apropriada, ele é obrigado a suportar situações que deflagram a violação total de seus direitos. Por diversas vezes o Ministério Público ajuizou ação contra o governo do Estado exigindo tratamento adequado ao adolescente privado de liberdade.
11) Conclusão
Muito se tem falado sobre a função e a competência do juiz da infância e da juventude: alega-se que para o exercício dessa função é preciso vocação, sensibilidade social, interesse, compromisso, iniciativa, conhecimentos em sociologia e psicologia, enfim, o juiz da infância e da juventude de forma alguma pode ser o “juiz de gabinete”. A aproximação com a sociedade civil, o enfrentamento com os políticos, a necessidade de informação e de conhecimento na área da infância e juventude tornam muito especial a função de juiz da infância e da juventude.
A mudança que este modelo coloca para a democracia exige uma nova consideração com relação a função do juiz e do papel do Poder Judiciário. A reação dos prefeitos, que por vezes tentam infamar o juiz com a clara intenção de atingir sua autoridade, acirra o conflito instaurado entre as duas formas de representação. O Prefeito Cesar Maia no Rio de Janeiro, por exemplo, acredita que por ter sido eleito, pode fazer cumprir o seu programa de partido mesmo que este não inclua a criança e o adolescente como prioridade de seu governo, embora seja uma determinação da Constituição Federal.
Por outro lado, alguns juízes enfrentam a questão se envolvendo, de fato, com os problemas políticos relacionados aos direitos da criança e do adolescente. O problema se acentua fora das capitais, pois existem municípios que ainda não têm um juizado especializado para infância e juventude. Além disso, existem municípios que ficam distantes da residência dos juízes e promotores que procuram o mais rápido possível uma oportunidade para fazer a transferência. Todavia, nas capitais a função de juiz da infância é melhor reconhecida, não apenas pela sociedade ou pelo Executivo, mas também pelos próprios juízes.
Pode-se concluir que para fazer avançar o processo de democratização neste país, este novo perfil de juiz da infância é fundamental. Ele pode estimular a discussão acerca dos direitos, levar a sociedade a refletir sobre a sua prática com crianças e adolescentes, enfim, exercer uma pedagogia capaz de contribuir para a integração da criança e do adolescente no cotidiano das cidades.
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Notas
[1] Revista Isto é, 27/11/96[2] CPI da População de Rua instituída pela resolução n° 940 de 2003. Seu presidente é o vereador Rubens de Andrade. [3] Jornal do Brasil, 28/05/2003[4] Art. 6° do Estatuto : Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.[5] Programa Soldados Nunca Mais, Ibiss, julho de 2002. A pesquisa foi apresentada na reunião do CMDCA do mës de agosto em 2002.[6] Site www.tj.rj.gov.br/instituc/1instancia/infan_juventude/[7] Informações recolhidas em entrevista com o juiz e no site do juizado [8] www.tj.rj.gov.br/instituc/1instancia/infan_juventude/
Vânia Morales Sierra – Doutora em ciências sociais pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ) e pela Université de Nanterre – Paris X. Professora do curso de Direito da Universidade Geraldo di Biase (UGB) e professora de política social da UERJ.