Os vereadores capitães do mato – por Siro Darlan

Palácio Pedro Ernesto completa 100 anos no mês de julho, sede do legislativo carioca fica no centro do Rio Janeiro. (Fotos: Tomaz Silva/Agência Brasil)

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Os vereadores capitães do mato – por Siro Darlan

 MAZOLA2 minutos ago  0  8 min read

Por Siro Darlan 

Na primeira semana de atividades, a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, uma cidade que não tem o número adequado de Conselhos Tutelares para proteger as crianças, que não tem creches nem escolas públicas de horário integral para acolher e proteger todas os menores necessitados de respeito a seus direitos, cujas favelas não conhecem políticas públicas de saneamento básico, água potável nem segurança pública, dois Vereadores resolveram inaugurar o ano legislativo “jogando para a plateia da extrema direita” cuspindo no prato que comeram, quando na campanha eleitoral visitaram as favelas prometendo “mundos e fundos”.

A inauguração do ano legislativo ocorreu com uma medida anti-intelectual e da visão artística autoritária que caracteriza tantos regimes antidemocráticos na história contemporânea onde a cultura não costuma ser vista por esses regimes como algo a ser simplesmente destruído. A cultura, ao lado da arte, na verdade, tem sido objeto de grande cobiça de governos autoritários e totalitários. A fim de conquistar corações e mentes, eles buscam controlar o teatro, o audiovisual, a imprensa, as galerias, os museus, as universidades e onde quer que se produza sentido sobre o país, o povo e a realidade. Como o Estado não produz cultura em si, ele procura controlar homens e mulheres que a produzam.

Obras de Freud, Kafka, Einstein e Marx estiveram entre os livros queimados em maio de 1933. (Divulgação)

Iniciaram seus mandatos lembrando e homenageando o dia 10 de maio de 1933 que ficou marcado na história como um dia de infâmia. Nesta data, ativistas nazistas e membros da União Estudantil nacional-Socialista jogaram livros de obras de autores “não-alemães” em fogueiras espalhadas por todo o país. ‘Lei anti-Oruam’: é projeto que tenta proibir o município de contratar artistas que fazem apologia ao crime começa a tramitar no Rio. Os vereadores Talita Galhardo (PSDB) e Pedro Duarte (Novo) protocolaram o projeto de lei nesta segunda-feira (17). O projeto trata da contratação direta ou indireta de shows, artistas e eventos abertos ao público infanto-juvenil.

Assim como os nazistas dão uma maquiagem nos títulos para passar a ideia de proteção ao público que tanto desprezam ao deixá-los sem os necessários cuidados sociais. Vide o número de crianças mortas em operações policiais e a quantidade de crianças grávidas precocemente.

Os nazistas controlavam as belas-artes, a música, imprensa e outras tantas áreas culturais. A vereadora menciona como letra de apologia ao crime um funk de autoria do MC Orelha, denominado Faixa de Gaza, sequer é de autoria de Oruam, mas o objetivo é calar a voz da periferia. Não passarão!

Desde o período escravocrata, o negro sofreu com as discriminações perante a sociedade. Os escravos não eram considerados gente, serviam apenas para trabalhos pesados e eram tratados com condições sub-humanas, além de várias violências às quais eram submetidos. O negro veio para o Brasil apenas para ser escravizado e, com isso, trouxe junto seus hábitos e costumes. Como se não bastasse toda a discriminação e violência sofrida, foi obrigado também a abrir mão de sua cultura, sendo forçado a aprender e praticar a cultura do branco.

Com o samba-enredo “Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”, a Paraíso do Tuiuti fez um dos desfiles mais marcantes do Carnaval de 2018 no Rio de Janeiro. (Divulgação)

Na verdade, os negros em muito contribuíram para a cultura brasileira geral. A diversidade cultural da África advém de vários escravos que vinham de diversas etnias, que tinham tradições distintas e falavam idiomas diferentes como os Bantos, Najôs e Jejes que deram origem às religiões afro-brasileiras, e os Hauças e Malês, de religiões islâmicas. O negro era proibido de manifestar sua cultura. Com isso, foram incorporadas à cultura africana algumas práticas indígenas e europeias, que manifestavam com diversas expressões como a religião, a música e a culinária. A partir disso, passou a ser denominada como cultura afro-brasileira. No início do século XIX, toda manifestação cultural afro-brasileira era descriminada e perseguida, pois além de não pertencer à cultura europeia, não representava o que chamavam de civilidade. Na verdade, eram vistas como retrato de cultura atrasada e selvagem.

Na década de 1920, destaca-se a perseguição do samba pela burguesia devido à vida avessa dos sambistas à dela. As novas letras de samba falavam sobre a vida de malandro, boêmio, além de discursar sobre o dia a dia da população favelada. Com isso, surgiu o nascimento do novo samba de botequim, sendo então comparado a uma vida de vadiagem, jogos de cartas e orgias. Portanto, primeiro o samba foi perseguido por ser música vinda do povo africano e por ser praticado em forma de dança por escravos libertos e, agora, por ser música de negro e vagabundo.

“Deixa Falar” deu origem à primeira escola de samba (Reprodução)

Pouca coisa mudou desde então. Nos últimos anos presenciamos uma onda de ataques às religiões de origem africana. No Rio de Janeiro criou-se um grupo ligado às igrejas evangélicas, composto por traficantes, líderes religiosos e autoridades policiais, chamado “Guerreiros de Deus”, responsável por incendiar terreiros e expulsar das favelas pais e mães de santo.

Surgiu também o grupo chamado “Gladiadores do Altar”, criado pela igreja Universal do Reino de Deus, que vem ameaçando os praticantes de Umbanda e Candomblé. Pesquisadores da PUC-RIO ao fazer o estudo “presença do axé mapeando território no Rio de Janeiro”, contabilizaram um alto índice de agressões aos frequentadores do culto afro-brasileiro. Das 840 casas visitadas 430 foram alvos de discriminação, ou seja, mais da metade, cerca de 57%.

O preconceito linguístico contra as letras de música funk faz parte de um sistema de ideologia em que a sociedade elitista defende o português padrão como mecanismo de exclusão e discriminação, além de classificar o falante como elemento inferior – em geral são negros e pobres. O funk passa, hoje, pelo mesmo processo de criminalização sofrido por todos os movimentos culturais criados pelo povo preto e pobre. Mas como foi ao longo da história, começa a receber reconhecimento por retratar a vida do povo da periferia.

Oruam, por cantar e retratar a vida do povo da periferia, está sendo perseguido e criminalizado acusado de fazer apologia ao crime e ás drogas. Diriam esses hipócritas que Chico Buarque ao criar o clássico da música popular brasileira Meu Guri, que nos leva a refletir sobre uma vida de miséria e desigualdade social vivida por uma mãe e um adolescente em conflito com a lei, estaria fazendo apologia do crime? Estaria nosso consagrado poeta Jorge Bem fazendo apologia ao crime ao compor e levar ao sucesso internacional a música popular brasileira que “A feira do Acari é um sucesso/ Tem de tudo/ É um mistério”? Estaria nosso imortal Bezerra da Silva fazendo apologia ao crime ao compor e cantar que:

“Vou apertar/Mas não vou acender agora (s’eimbora gente) / Vou apertar/ Mas não vou acender agora/ E se segura malandro/ Pra fazer a cabeça tem hora”?

Certamente que não porque não teriam coragem de agredir poetas que cantam a vida e o sofrimento de um povo ignorado por grande parte dos políticos que desprezam o povo da periferia. Mas Oruam é um prato cheio para os neonazistas atacarem. É um negro e jovem poeta, psicólogo, que poderia estar na vida do crime que esses vereadores e parte dos que os aplaudem desejam, mas resolveu fazer poesia cantando a desigualdade social e o sofrimento de seu povo, que como bom filho, sente a ausência do pai, que nasceu quando já estava preso, que não é o mesmo homem que justificou sua detenção, mas ninguém o ajuda com essa perseguição a voltar para sua família como um novo ser humano. Mas que culpa tem Oruam para ser sempre identificado, não como o menino que tem mais de 9 milhões de seguidores. Qual o vereador que tem esse número? Que sendo negro e periférico faz sucesso extraordinário, o que é inadmissível para essa elite conservadora que não admite a ascensão social do negro e do pobre.

Mais políticas públicas e menos perseguição as artes populares!!!

SIRO DARLAN – Advogado e Jornalista; Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Ex-juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), aposentado compulsoriamente por conceder benefício a preso em risco de vida, que uma vez preso faleceu nas grades da crueldade estatal; Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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