Charge do Alpino. (Yahoo Notícias)DESTAQUESQue justiça é essa – por Siro Darlan MAZOLA, 3 dias ago 0 7 min read
Por Siro Darlan –
Parodiando esses versos da legião Urbana, é hora de se perguntar que Justiça é essa?
Quando jovem estudante de direito dos bancos da UERJ do Velho Casarão do Catete, sonhava servir à sociedade com advogado para levantar bem alto a imagem da Justiça, aquela Deusa grega de olhos vendados que garantia direitos e trazia a equidade, liberdade e solidariedade aos pobres e oprimidos. Tínhamos uma Justiça do Trabalho fortalecida evitando o quanto podia a exploração dos trabalhadores mais humilhados que buscavam sem qualquer coação os Tribunais para que seus direitos trabalhistas fossem respeitados diante do Dragão do dos donos do dinheiro. Saiam de lá revigorados e justiçados.
Haviam sábios nos Tribunais, intocáveis e respeitáveis a ponto de manter um distanciamento quase divino dos jurisdicionados, e até dos juízes de primeiro grau, não se misturavam, mas fiéis aplicadores das leis e interpretes da Constituição, a ponto de escreverem tratados repletos de sabedoria, por todos respeitados e seguidos. Quase todos tinham livros publicados e eram professores universitários, Mestres e Doutores. Mesmo quando ascendi à magistratura tinha total reverência e mantinha um respeitoso distanciamento desses “deuses do Olimpo”. Reclamava muito desse distanciamento porque entendia que longe do povo não poderia ter sensibilidade com os problemas enfrentados pelo povo que julgava.
Segundo o filósofo Byung-Chul Han, “O neoliberalismo que gera muitas injustiças, não é algo muito bonito. A palavra inglesa fair significa tanto justo quanto belo. Originalmente, a palavra fegen significa deixar brilhando. O duplo sentido de fair é uma indicação marcante de que originariamente, beleza e justiça se sustentam na mesma ideia. A justiça é vista como bela. Há uma sinestesia especial que liga a justiça com a beleza. ” No entanto, a partir do “mensalão” e da lava-jato” houve uma profanação, que significa atribuir às coisas um uso diferente, um uso livre, um uso com objetivos estranhos, para além de suas conexões funcionais originárias, da instituição da justiça para perseguir inimigos políticos, transformando o direito em uma arma para uma guerra contra determinados inimigos.
Não é de hoje que o direito tem sido uma arma utilizada para prender, processar e até matar determinados indivíduos eleitos pelas elites para serem excluídos e matáveis. Desde a abolição da escravidão, que leis têm sido editadas com a finalidade de exclusão social de pobres, negros e dos povos originários. A “guerra às drogas”, a criminalização da pobreza com a lei da vadiagem, do pito do pango, a criminalização da resistência na posse das terras improdutivas e ociosas demonstram alguns aspectos dessa instrumentalização bélica da justiça, que desse modo se afasta do belo, de seu significado original.
O sistema capitalista articulou três tipos de guerra. A primeira iniciada nos EUA, e logo copiada pelo Brasil, foi a guerra contra as drogas (ou contra a gente) cujo objetivo era encher as prisões de jovens negros e pobres por causa do consumo de drogas, misturando o consumo com o tráfico. A recente crise do Equador coloca em evidência o fracasso dessa política de medidas de violência e policial no controle de drogas, tal como se faz no Brasil com eficácia zero e prisões superlotadas com morticínio da população jovem, negra e pobre.
A segunda grande guerra teve como causa o terrorismo, depois do atentado á torres gêmeas, motivando a invasão de países árabes notadamente os detentores de riquezas energéticas sob pretexto de guerra aos terroristas. Já a terceira guerra foi contra a corrupção, visando com essa motivação a desestabilização dos governos progressistas não alinhados com o capitalismo. A tese principal dessa guerra é atacar aquele valor que legitima uma posição progressista através do direito atingindo-o nos princípios mais caros como a moralidade, a honestidade e a ética. Aliados judiciário e mídia atacam, sem provas esses princípios para levar à lona seus inimigos por eleição.
O judiciário é um poder contra majoritário, não deve julgar de acordo com a maré ou a opinião pública. Quando se utiliza do lawfare dentro do próprio sistema de justiça nega sua própria natureza, que por essência deve ser garantista. Na França, quando os “Luizes”, (reis da França) dominaram o judiciário o resultado foi a guilhotina. No Brasil não precisamos ir tão longe. Mas a natureza do Judiciário é garantir os direitos fundamentais e o devido processo legal, incluindo o direito de defesa e a presunção de inocência. Tudo isso é negado no lawfare. Nos últimos tempos o que importa é focar em um fim avaliado como válido, qualquer meio pode ser usado. Se a guerra é contra as drogas, invadir residências de pobres sem mandado judicial, proibir de jovens negros frequentarem praias e ambiente públicos, mesmo quando não praticam crimes, matar sob pretexto de auto de resistência, tudo é válido para superlotar prisões com pobres e negros.
No Brasil embora o judiciário seja essencialmente garantista de direitos fundamentais, os juízes são divididos em grantatistas e punitivistas, mesmo tendo feito o mesmo juramento de cumprir e fazer cumprir as leis e a Constituição, cada corrente tem sua própria Constituição. Precisamos rediscutir o sistema de Justiça que diante do autoritarismo predominante criou no cidadão comum uma desconfiança demonstrada pelas estatísticas que a pontam o judiciário como um poder em que menos confiam, porque foi substituído o conceito de respeitabilidade pela estética do medo. A qualquer momento sua casa pode ser invadida não por um meliante, mas por uma agente da justiça munido por um mandado de busca e apreensão imotivado. A toga preta impõe o terror e o medo. Não discuta a decisão judicial, cumpra-a! Quando se tenta discutir entra em outro processo de desacato e desobediência! Há uma ilusão de que tudo se conserta na justiça, e não é verdade. Quando você recorre ao judiciário você cria outro problema diante do alto custo e da morosidade que causará graves problemas psicológicos e econômicos.
Ademais, modernamente a maior natureza do Judiciário tem sido o de legitimador da ordem econômica social e política reinante. Quantas decisões judiciais contrariam o capital, contrariam os bancos, contrariam as relações sociais de propriedade? Verifique a jurisprudência dominante que em nada favorece os movimentos sociais pela busca da moradia, dos direitos dos trabalhadores, da inclusão social. Quando juiz da infância e da juventude tive muitas sentenças em ações civis públicas promovidas pelo ministério público em favor das políticas públicas inclusivas para crianças e adolescentes modificadas pelos Tribunais superiores.
O lawfare é um meio utilizado para manter o povo subjugado, alienado e privado de seus direitos, garantindo uma ordem opressiva e coercitiva. É uma ferramenta para atingir aqueles que lutam contra a ordem estabelecida, sejam partidos políticos, movimentos sociais (vide como criminalizam o MST), ou indivíduos (padre Júlio Lancelotti) que buscam desafiar o status quo e construir um mundo mais justo, igualitário e solidário. O lawfare busca criar uma visão autoritária e coercitiva, baseada na mentira, de que é uma verdade imposta, de que é uma narrativa impositiva.
O povo tem sido a maior vítima do lawfare.
SIRO DARLAN – Advogado e Jornalista; Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Ex-juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.