Quem nasceu primeiro o cidadão infrator ou o Estado criminoso? – por Siro Darlan

Charge do LatuffDESTAQUESESPECIALQuem nasceu primeiro o cidadão infrator ou o Estado criminoso? – por Siro Darlan  MAZOLA2 dias ago 0  8 min read  22838

Por Siro Darlan –

Série Presídios XIII.

Estive agora visitando alguns sistemas penais mais civilizados que o nosso. É espantoso como o homem comum é capaz de responder afirmativamente quando o Estado organizado o trata com respeito e dignidade. O número de presos é infinitamente menor, porque não há necessidade de punir quando o Estado estabelece políticas públicas de igualdade e respeito.

Esse série, assim como Fiódor Dostoiévski, que teve a experiência de prisioneiro, deu voz ao presos forçados e torturados ainda no Século XIX, pensamos ser de utilidade pública trazer para o debate público a experiência dos punidos pelo olhar racista, preconceituoso e desigual do Sistema Penal para que possamos refletir quanto o grau de civilização em que vivemos se olharmos o que já dizia o escritor russo há mais de dois séculos.

“Um homem como ele pensa sempre em esmagar, em    estrangular alguém, em arrebatar alguma coisa, em privar alguém de um direito, numa palavra, manter a ordem por todas as formas. Desta maneira é que ele era conhecido em toda a cidade. Era-lhe em absoluto indiferente que os vexames provocassem rebeliões. Para esses delitos havia os castigos (há muitas pessoas que pensam como o nosso major!); com os canalhas dos forçados sói se deve empregar uma severidade impiedosa, cingindo-se à aplicação rigorosa da lei – eis tudo! Estes incapazes executores.”

Fiódor Dostoiévski – Recordações da Casa dos Mortos

Nosso escritor de hoje nos traz a seguinte reflexão:

“Fazia tudo o que eles quisessem, acreditava em tudo que eles dissessem” (O reggae – Legião Urbana)

Há um preceito moral de que se você vê algo errado e não se opõe você é conivente com o erro, ou legalmente falando: cúmplice do erro. Vemos ou temos a sensação de que o indivíduo preso merece todo o tipo de ojeriza eterna, ou melhor, de que a pena da perda da liberdade é pouca e enquanto preso, este, merece o pior possível de todos os tratamentos. Mas este pensamento de vendetta é ilegal, posto que isto não está na lei. Temos no Estado Democrático de Direitos, direitos e deveres, e ao infringir qualquer direito alheio ou o não cumprimento de deveres, punições estabelecidas na Constituição, a mais severa das punições é a perda da liberdade e só, não há espaço para outras punições ou revanchismo, para cada crime uma sentença, maior ou menor dependendo do delito praticado, a infração da lei vai ser paga com o TEMPO recluso, e neste TEMPO o indivíduo fica sob a responsabilidade do Estado. Seria cômico se não fosse trágico que o mesmo Estado que abandonou este sujeito a sua vida toda, agora seja seu “responsável”, o mesmo Estado que não lhe deu Educação, segurança e saúde, seja agora seu tutor, o Estado, ah esse Estado, mentiroso por natureza que muito promete e nada cumpre, é agora o tutor de alguém que se voltou contra ele.

O Estado oferece uma cartilha de direitos e deveres nomeada de Constituição, cada indivíduo que nasce sob o manto deste Estado, sujeita-se involuntariamente a essa Constituição, nasce preso a deveres que nem sabe, e tem direitos que nunca lhes são apresentados. Para os deveres infringidos a punição, para os direitos apenas a demagogia usual dos asseclas do Estado. Quando o indivíduo é preso, isto é, quando ele foi punido por não atender os “deveres” do Estado, ele é colocado no castigo Estatal que é a prisão, na prisão o único direito que o Estado lhe retira é o da liberdade, mas o que acontece com os demais direitos humanos assegurados a quem está sob a custódia do Estado? Prometem nessa baboseira Constitucional alimentação, vestuário e higiene, mas como vimos antes o Estado é mister em não cumprir com suas promessas, e a realidade fica só na promessa. A alimentação é precária e insuficiente, a janta é servida por volta das 16:00 e o jejum segue até as 9:00 da manhã do dia seguinte, são em média 16 horas sem alimentação, nem os cachorros da SUIPA ficam tantas horas sem comer. O vestuário fica ao encargo do próprio preso, que em um primeiro momento é assistido pelo próprio coletivo carcerário, é mínimo o número de presos que são assistidos por suas famílias por meio das custódias ou visitas, deixando assim a maior parte da população carcerária desprovida de insumos básicos. E por falar em insumos básicos, é comum a disciplina dos Presídios obrigarem os presos a terem a barba feita e os cabelos cortados, mas quem cobra tais obrigações não fornece nem o barbeador nem a máquina para cortar o cabelo, como se cobra por algo que não se oferece? Sabonetes e pasta de dente deveriam sem oferecidos a todos pelo menos quinzenalmente, mas o que vemos não é isso, sabonetes e pasta de dentes são insumos de luxo num lugar extremamente miserável, este lugar miserável é assim por culpa de quem o administra, o ESTADO.

Avistados os problemas o Estado nos oferece duas saídas, a primeira consiste na CUSTÓDIA FAMILIAR e a segunda à CANTINA, já falei aqui sobre o número de presos que são ajudados por suas famílias, a grande parte da massa carcerária vem de famílias pobres que fazem o impossível para acompanhá-los durante a jornada na clausura, e lembrando que se o custo do Estado para a manutenção do indivíduo preso é exorbitante, e motivo de inúmeras discussões sobre corte de gastos, para uma família pobre manter os insumos básicos de um familiar preso é uma fortuna, imagina para esta mesma família ajudar mais de um interno, além do custo o peso das bolsas e a longa jornada até o presídio seriam um suplício. 

Sobram então para as CANTINAS, todos os que entendem um pouco sobre mercado sabem que o monopólio de qualquer natureza traz a tirania, para as cantinas não é diferente, o monopólio de deus-sabe-quem sobre as cantinas faz com que as tabelas de preços de produtos básicos sejam superfaturados, produtos com lucros exorbitantes são vendidos à massa carcerária sem qualquer fiscalização. O preso refém desta tabela opressora e sem condições de comprar produtos mais baratos alimenta um sistema de exploração do mais vulnerável.

Como sobreviver a este SISTEMA? Não são exceções, os miseráveis perambulando pelas galerias, mal cheirosos, maltrapilhos e expostos a uma vida insalubre, e o Estado o que faz? Fecha os olhos para tal realidade, se desfaz daquele que mais precisa, parece que é uma expertise do Estado ignorar seus filhos mais necessitados, negligencia o amparo daquele que está sob sua custódia, mais uma promessa que ele não cumprirá, a promessa de ressocialização, como socializar um indivíduo com desamparo e opressão? 

Dizem que o cárcere é a “máquina de moer gente”, essa máquina é gerenciada por quem? Quem é o responsável por fazer cumprir a lei para quem foi julgado por ela? Para se prender um indivíduo todo um rito jurídico é executado, mas e o após isso? Quem faz cumprir a lei para quem foi sentenciado por ela? No cárcere todas as regras legalistas são ignoradas, já fiz essa pergunta várias vezes e elas nunca foram respondidas, quem as responderá agora? Um Estado marginal foi criado e o ódio e a ignorância são o que o alimenta.”

No século XIX um escritor fez de sua experiência literatura. Felizes os presos, privados da liberdade que tinham acesso à cultura e à literatura. Mas no Sistema penitenciário de um país dito civilizados mais de dois séculos depois o acesso à educação e à cultura ainda é uma exceção e o direito fundamental de educação é negado a maioria da massa carcerária.

Leia também:

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2- Para que servem os presídios? – por Siro Darlan

3- Como transformar seres humanos em seres sem dignidade humana – por Siro Darlan

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9-  O Dia do Detento – por Siro Darlan

10- Para além das prisões – por Siro Darlan 

11- Justiça Restaurativa – por Siro Darlan 

12 – Alternativas à privação da liberdade – por Siro Darlan

SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.