CAMARA DOS DEPUTADOS

AUDIÊNCIA PUBLICA – 16 de abril 2021 – 10 horas

Comissão de Juristas destinada a avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país. (Ato do Presidente da Câmara dos Deputados de 17/12/2020)

Grupo de Trabalho Temático – Sistema Criminal e Racismo

REPRESENTAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO JUIZES PARA A DEMOCRACIA.

SIRO DARLAN DE OLIVEIRA, desembargador do TJRJ –

  1. O sistema judiciário, formado por maioria branca, é parte constituinte do Estado que perpetua os moldes historicamente determinados pelo racismo estrutural.
  2. O Brasil é um país de DNA escravocrata, e que até o momento não superou esse trauma da classe burguesa que perdeu sua mão de obra escrava, e a substituiu pela mão de obra dos imigrantes e operários espoliados através de condições de trabalho de semiescravidão, marcado pela opressão das elites financeiras que filtram a entrada dos afrodescendentes e pobres na possibilidade de ascensão social.
  3. Outro ponto historicamente importante da marca desse racismo estrutural é o colonialismo. A Europa, partindo não só de interesses econômicos como também planos de aculturação, concretizou projeto colonial por todo o mundo, marcando sua presença desde o continente americano até os continentes africano e asiático. Nesse processo a construção de duas narrativas são chave para compreendermos uma opressão que persiste determinante na luta de classes, o racismo.
  4. Segundo propôs Darcy Ribeiro em sua obra “O Povo Brasileiro”, o salvacionismo, através da catequização e de outras formas de aculturamento formulou a crença de que os povos colonizados eram adoradores de demônios que precisariam ser salvos. Este seria um dos pontos de partida para a objetificação desse povo e para não os considerar parte da humanidade ou dos “filhos de Deus”.
  5. A naturalização como essa sociedade assimilou a escravidão, como consequência do “darwinismo social” que enfatizou serem os europeu são de raça superior, e os demais povos inferiores, portanto escravizáveis, deixou marcas que perduram até hoje e deságua na formação das instituições brasileiras, mesmo depois da proclamação da República, como no caso do judiciário e do ministério público, onde os descendentes dos europeus ainda predominam de forma quase absoluta.
  6. A Lei de Possessão de Terras, editada antes da Lei Áurea,  garantiu que as terras brasileiras fossem distribuídas antes que os que haviam sido escravisado escravizados e seus descendentes pudessem fazer parte dessa distribuição, assim como a Constituição Imperial de 1824 que  “previu a educação primária gratuita a todos os cidadãos, com exclusão dos escravizados”, já de partida, impediu o acesso aos estabelecimentos oficiais de ensino, mas possibilita que a população negra liberta frequentasse essas instituições, foram os dois atos normativos que fundamentaram a construção de uma imagem de inferioridade dos escravizados e seus descendentes, colocando-os na condição de marginalizados e nas piores condições econômicas.
  7. Essa exclusão educacional e econômica definindo que os burgueses seriam os donos das terras e dos meios de produção e os demais seriam a força do trabalho e ficariam à mercê dessa elite estabeleceu as condições e o preço do trabalho e foram determinantes para estabelecer esse racismo estrutural existente na sociedade até o momento.
  8. Como é o Estado que regula essas relações, o sistema judiciário que é parte constituinte desse Estado perpetua os moldes historicamente determinados pelo racismo estrutural. Reorganizando-se como uma instituição racista e estabelecendo um parâmetro de seletividade, que escolhe quando e para quem devem ser preservadas as garantias constitucionais do acusado. Como afirmou Abdias do Nascimento e Elisa Larkin, o racismo opera de forma institucional e sistêmica.“Pessoas brancas controlam praticamente todas as instituições públicas e privadas deste país; isso permite que elas operem de acordo com os interesses do grupo racial dominante”.
  9. No entantoessas instituições não atuam de forma isolada. O racismo que torna a escola um ambiente hostil para crianças também motiva o comportamento discriminatório de policiais militares em relação aos negros que influencia a forma como negros são tratados no sistema judiciário. Por ser uma prática coletiva, ela contamina as instituições públicas e privadas, afetando diversas dimensões das vidas de pessoas negras neste país.
  10. O sistema penal brasileiro, considerado por nossa Corte Máxima como “em estado de inconstitucionalidade” contempla um retrato que mostra que 56 % da população carcerária é composta por jovens com a faixa etária entre 18 a 29 anos de idade, dos quais 67% são negros. A cada três presos, dois são negros. A pesquisa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro se mostra mais assustadora ao informar que as chances de um branco preso em flagrante ser solto ao ser apresentado ao juiz, nas chamadas audiências de custódia, é 32% maior que a de um negro. Esses números nos levam a compreender que por trás desses dados há uma realidade assustadora: corpos negros como alvo de condenação do sistema penal.
  11. No sistema repressivo brasileiro, o primeiro juiz da causa é o policial, que exerce sua função sem qualquer capacitação legal, social, e atua como representante de uma sociedade estruturalmente racista e isso reflete no trabalho do policial, empoderado com armas e autoridade, o que torna o agente um perigoso agente mais gravoso à sociedade do que o suposto delinquente que eles prendem. A realidade do poder exercido pelas milícias é o bastante para comprovar essa afirmação e os mais importantes milicianos conhecidos têm sido formados no BOPE.
  12. Esse primeiro juízo tem sido homologado, sem questionamentos pelo ministério público que quase nunca exerce o poder de fiscalização das policias e nunca produz qualquer investigação para corroborar a sua palavra. O judiciário, pior ainda, chegou a implementar súmulas dando credibilidade absoluta à palavra dos policiais, e com exclusividade em 90% dos processos julgados.
  13. A falta de um juizado de garantias, presente em todas as legislações civilizadas, comete o absurdo de dar validade a um julgamento pelo mesmo juiz que autoriza a coleta de provas, preside essa coleta e, evidentemente influenciado pela produção dessas “provas” por ele mesmo, sentencia, sem a devida distância da imperiosa imparcialidade, sem a qual toda decisão judicial é nula.
  14. Em “Prisões são obsoletas?”, Ângela Davis afirma que “muitas pessoas nas comunidades negra, latina e indígena agora têm uma chance muito maior de ir para a prisão do que de obter uma educação decente”. Essas prisões, que facilmente se transformam em condenações, por mais que sejam um recorte temporal, é o reflexo da realidade enfrentada pela população negra, onde as garantias constitucionais como a da presunção de inocência (não culpabilidade) não lhe é garantida. Ainda que possua provas de sua inocência, essas não são aceitas pela autoridade judicial.
  15. A forma de pensamento determina diretamente a interpretação dos significados das normas jurídicas, bem como a maneira em que o direito deveria funcionar em uma sociedade marcada pelas desigualdades raciais. Nessa linha de raciocínio, o direito pode ser usado como um instrumento de segregação racial, transformando o poder judiciário em uma máquina de condenação de corpos negros, quando não incorporada por uma lógica antirracista.
  16. O Judiciário brasileiro formado por uma maioria branca determina o futuro da população negra. Isto posto, é necessário que haja no Brasil um sistema processual antirracista, onde as garantias constitucionais da população negra não sejam violadas por juízes racistas que contribuem para o fortalecimento do racismo estrutural brasileiro.
  17. O direito a um processo penal justo não é uma garantia exclusiva da população branca. Na busca pela verdade através do Processo Penal é importante que as regras que determinam as jogadas processuais sejam respeitadas, que as decisões não sejam fundamentadas com base na cor do acusado e sim nas provas prevista nos autos, respeitando sempre as garantias constitucionais. A cor não informa o crime. E para que seja aplicado um processo penal justo é necessária a aniquilação total do racismo
  18. As lutas contra o ódio e a discriminação por razões de raça, gênero e pertencimento a grupos politicamente minoritários, como manifestação do acirramento da luta de classes instaurada sob a ordem neoliberal e do avanço do extremismo supremacista ao redor do mundo, exigem constante reflexão, debate, posicionamento e ações concretas pela Associação de Juízes para a Democracia.

            No contexto descrito acima, ao descumprir o seu papel de garante da Constituição, o Poder Judiciário reduz o texto constitucional a uma promessa vazia.

Tal qual um Narciso às avessas, seu rosto masculino e branco é o reflexo do fosso entre os integrantes do Judiciário e a diversidade social brasileira.

O Judiciário também aprofunda a sua crise de legitimidade, quando adota decisões claramente inconstitucionais, como ocorreu no âmbito da Lava-jato; quando pune juízes que não se rendem ao populismo criminal e julgam conforme à Constituição; e, ainda, quando, condena, seletivamente, os veículos de jornalismo independentes, nos processos que envolvem os limites da liberdade de expressão, tão sagrada aos liberais e tão incômoda quando o roteiro é contra hegemônico.

Em cenário nebuloso, nunca é demais reafirmar o óbvio: não é tarefa do Judiciário o combate à criminalidade, tampouco a implantação de políticas públicas na área da segurança. Assim como escapa às suas atribuições, por óbvio, a censura. A função primordial atribuída constitucionalmente ao Poder Judiciário é o de limitar os excessos da atividade persecutória e da liberdade de expressão, assegurando que os direitos e garantias fundamentais sejam respeitados para que a democracia material se concretize. A relevância de seu papel contra majoritário demanda que não haja qualquer compromisso ou subserviência às maiorias de ocasião.

Na condição de um dos pilares do Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário tem o dever de colaborar com a redemocratização do país, a partir de sua reinvenção democrática.

Assim, sugere-se a superação do déficit de democracia do Poder Judiciário expressa-se em três dimensões, as quais desafiam profundas transformações. São elas: a) perfil dos magistrados; b) sistema penal e; c) acesso à justiça.

19. Pugna por uma política de desencarceramento.

A escalada punitivista reverbera a perda da solidariedade por parte de uma sociedade maniqueísta e sem qualquer senso de alteridade. A seletividade do Direito Penal opera como mecanismo estatal eficiente na contenção, exclusão e até eliminação dos indivíduos descartáveis, seja do ponto de vista racial, de classe ou político.

            O enfrentamento dos movimentos que desejam o recrudescimento penal passa pelo resgate da política de alternativas penais; fomento às práticas restaurativas, que promovem responsabilização ao invés de punição e; fortalecimento do movimento de defesa do desarmamento e da descriminalização do comércio e consumo de entorpecentes.

            Tais medidas, que por certo provocarão o desencarceramento em massa de um segmento social muito específico – o jovem, negro e pobre da periferia –, desafiarão a implementação de uma política ampla e eficiente para promover a inclusão social dos egressos do Sistema Penal.

            Sobre a questão carcerária em si e o estado de coisas inconstitucional já amplamente reconhecido e declarado pelo Supremo Tribunal Federal, remete-se aos argumentos dos que desejam um sistema carcerário em conformidade com a Constituição e a Lei de Execuções Penais em respeito à dignidade da pessoa humana.

19.                          CONCLUSÃO:

Assim colocadas essas premissas, que retratam o sistema racista que predomina no sistema de justiça brasileiro, a Associação de Juízes para a Democracia propõe as seguintes providências:

  1. Defender e exigir o cumprimento dos direitos humanos e das garantias fundamentais como patamares legais mínimos e conquista civilizatória, cuja alteração somente pode ser admitida para a ampliação dos benefícios, nunca para o prejuízo, nos termos avençados no Pacto de São José da Costa Rica que veda o retrocesso social.
  2. Defender e exigir a imediata implantação dos Juizados de Garantias, criado pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que aperfeiçoou a legislação penal e processual penal.
  • É preciso compreender que o enfrentamento do racismo e do machismo estruturais é urgente em todo o mundo e, no Brasil, em especial, em que o legado do passado colonial e escravocrata ainda não foi superado, tal urgência é ainda mais premente. Somos o quinto país em número de feminicídios e o país mais inseguro do mundo para as pessoas transexuais.
  • A violência é um fenômeno que tem assombrado os brasileiros. As populações econômica e socialmente vulneráveis enfrentam diariamente confrontos entre as forças públicas de segurança, milícias e facções. E a principal vítima é a vida humana. Olvidando-se para isso, como causa e resultado, o estado brasileiro continua a seguir as políticas neoliberais, num país historicamente racista, patriarcal e colonialista. Afrontam-se os valores, a cultura e a contribuição da academia é ignorada, são criados temores e desesperos sociais. O objetivo é fortalecer o estado policial para, por meio da necropolítica, reduzir os direitos humanos e os paradigmas constitucionais a meros obstáculos ao enfrentamento do crime. As leis penais de emergência, cujo ápice está na Lei Antidrogas e em boa parte no pacote anticrime, ganham força, sustentadas em um Código Penal que em sua parte especial continua ideologicamente comprometido com o capital.
  • Reabrir uma ampla revisão da justiça criminal com atenção especial à execução penal de modo a garantir o respeito aos fundamentos racionais e científicos da civilidade e aos valores éticos da sociedade. Sobretudo dentro do sistema de justiça criminal e em especial na execução penal, a ciência da criminologia de base sociológica e crítica, que por décadas e até séculos têm demonstrado que a função da pena não serve para o que oficialmente se propõe – a prevenção -, é invisibilizada. Vivemos assim sob a égide de um direito penal segregacionista, destinado a encarcerar na sua maioria pessoas de 18 a 28 anos de idade, pretas, pardas e pobres. Atualmente, são mais de 800.000 presos no Brasil, o que em números absolutos significa a terceira maior população carcerária mundial, ficando atrás dos EUA e China. Há pouco mais de uma década essa população era a metade disso. A perspectiva, a seguir essa linha encarceradora, é de chegar na terceira década deste século com mais de um milhão de presos. E não há vagas para todo esse contingente. O estado não investiu e não investirá o suficiente em prisões, por uma questão puramente de cálculo matemático/econômico.
  • Garantir que as unidades prisionais disponham de condições básicas de higiene e recursos materiais e humanos que atendam às necessidades básicas dos detentos, incluído cuidados de saúde e capacitação profissionais, uma vez que com raras exceções, os detentos vivem sem colchão para dormir, sem kit-higiene, sem trabalho, sem estudo, acesso à saúde, e são coisificados nesses navios negreiros do século XXI em franca afronta à dignidade da pessoa humana.
  • Pressionar o Estado a tomar medidas concretas para superar o atual estado de coisas inconstitucional de violação dos direitos humanos, e especialmente o fundamento da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF), laborando para que a dor das prisões deixe de ser uma mancha no tecido da nação.
  • Propor, na perspectiva do Poder Judiciário, alternativas penais ao enfrentamento à cultura do encarceramento, aos pressupostos básicos da distribuição de renda e oferta de oportunidades iguais a todos, descriminalização das drogas e superação do racismo com vistas à assunção efetiva das responsabilidades pelo juiz em face das garantias fundamentais das pessoas privadas de liberdade e na sua capacitação para tanto.
  • Reduzir o encarceramento através de penas restritivas de direitos, medidas alternativas à prisão, fortalecidas pelas audiências de custódia, justiça restaurativa etc., com o protagonismo efetivo do juiz da execução penal diante do sistema. Com a redução do encarceramento criam-se condições concretas para que o direito penal no seu devido lugar, e o estado consiga cuidar, de acordo com a Constituição e os direitos humanos daqueles que, superadas todas as alternativas, depois do devido processo legal, tiveram a privação da liberdade imposta. A lei de execução penal poderá então finalmente ser aplicada, numa forma concreta de redução de danos que o aprisionamento causa mesmo dentro dos limites da lei.
  1. Fomentar a criação de unidades judiciárias exclusivas para execução de penas restritivas de direitos e privativas de liberdade em regime aberto, bem como livramento condicional e sursis, com apoio na instalação de Centrais em cooperação com o Poder Executivo;
  2. Aprofundar as inspeções prisionais pelos juízes da execução penal, com enfrentamento direto e dentro das unidades para garantia dos direitos fundamentais, com escuta específica de pessoas presas e trabalhadores, tratamento e seguimento das questões que envolvam tortura, atenção à saúde (covid-19), apoio à atuação de controle externo dos conselhos da comunidade e finalmente tomada da inspeção como atestado das condições de custódia a fim de orientar decisões judiciais sobre prisões e início da implantação de números clausus;
  3. Promover a qualificação dos juízes em ética e humanismo, com concentração na execução penal, incorporando conteúdos, como: Regras de Nelson Mandela, Protocolo de Istambul, Regras de Bangkok, Princípios de Yogyakarta, além de cursos sobre direitos humanos;
  4. Reiterar a necessidade de qualificação dos juízes e juízas, de primeiro e segundo graus de jurisdição, por ações da ENFAM e de todas as escolas judiciais e de magistratura, com conteúdo programático OBRIGATÓRIO, nos cursos de formação inicial e continuada;
  5. Lutar pela implantação da cota racial e social na proporção de 30% do corpo docente e discente nas Escolas da Magistratura do Brasil e pleitear a OAB que patrocine o vestuário e material escolar para evitar qualquer tipo de constrangimento no ambiente acadêmico;
  6. Reconhecer a Audiência de Custódia como direito humano e garantia fundamental;
  7. Defender a participação do Juiz de Garantias como mecanismo de aprofundamento do princípio constitucional Acusatório e da imparcialidade do julgamento;
  8. Combater às iniciativas de privatização do sistema carcerário.

            Não basta, portanto, apenas considerar a dignidade da pessoa humana como um princípio basilar constitucional, mas o melhor é que seus fundamentos decorram em práticas concretas por meio de um conjunto de medidas político-jurídicas que sustentem o valor de todo ser humano, e dê um fim no racismo estrutural, refletido por uma ética primordial de responsabilidade.