Como fabricar um bandido.
Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a democracia.
Escolha uma criança, de preferência negra, mas pode ser branca, desde que seja muito pobre, e de uma família de prole numerosa; é recomendável o sexto ou sétimo filho, e que o pai seja omisso no cumprimento do exercício do poder familiar e sequer tenha registrado seu filho. Os irmãos devem preferencialmente ser de pais diferentes e, a mãe, se não for alcoólatra, deve estar desempregada. Deve residir em comunidade onde o poder público só comparece para trocar tiros ou pedir votos e deixar vítimas. Esta não pode ter escola, nem posto de saúde e deve receber com freqüência a visita do “caveirão”. Será fácil achar essa comunidade no Rio de Janeiro.
Ensine, desde cedo a essa criança, que ela não é amada, que é rejeitada por sua própria família, que a todo instante demonstra sua insatisfação com esse rebento. Para tanto, espanque-a pelo menos três vezes ao dia para que ela saiba que, na vida, tudo tem que ser tratado com muita violência. Impeça qualquer possibilidade de desenvolver-se sadia, pois esse fato estragará todo o seu projeto. Importante: repita sempre para essa criança que ela é má, coisa ruim, semente do mal como afirmam algusn magistrados, e odiada pela família, principalmente porque chegou para dividir o pequeno espaço que os abriga e a escassa alimentação.
Pode-se optar por deixá-la em casa, na ociosidade, afinal faltam vagas nas creches do município, ou se preferir, encaminhe-a para uma escola onde os professores faltem muito e que as greves sejam freqüentes, caso contrário ela pode correr o risco de gostar de estudar e aí ser muito difícil continuar analfabeta, o que pode colocar em risco o seu projeto.
Uma opção interessante é colocar a criança para trabalhar desde muito cedo. Infância pra que? Perder tempo com brincadeiras não é coisa para criança favelada. Tem mesmo é que ganhar a vida muito cedo e ainda trazer dinheiro para sustentar a família faminta. A rua está cheia de espaço público para que elas fiquem vendendo balas e jogando bolinhas até que possa ser “usada” na exploração sexual, uma atividade lucrativa muito estimulada por adultos.
Fragilize-a. Não permita qualquer acesso à saúde; médicos e medicamentos devem ser mantidos à distância. Para acelerar sua debilidade, aproxime-a das drogas; a cola de sapateiro é um bom começo e ajuda a “matar a fome”, mas o “crack” é muito mais eficaz e barato nos dias de hoje.
A campanha pela redução da responsabilidade penal é imprescindível para pôr logo esses “perigosos bandidos” na cadeia. Afinal são eles os grandes responsáveis por tanta violência ainda que os índices oficiais não cheguem a 2% dos atos violentos atribuídos aos jovens, e o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro tenha constatado que eles são agentes de violência num percentual de 9,8% contra 91,2% onde são vítimas. Reduzindo a responsabilidade penal você fica livre mais rápido dessa “sujeira” que ocupa os logradouros públicos, denunciando a incompetência dos administradores públicos para implementar as políticas públicas necessárias para a promoção dos excluídos à categoria de cidadãos.
É claro que eles já têm maturidade para responder por seus atos criminosos. Afinal, assistem diariamente às nossas pedagógicas novelas e são informados pelos despretensiosos meios de comunicação social, que mesmo tratando o telespectador como a família Simpson, jamais influencia a nossa “livre” opinião. E, claro, todas as crianças e adolescentes do Brasil têm à sua disposição as melhores escolas do mundo. A miséria é matéria prima essencial para que haja sempre o que noticiar, sem esse ingrediente não há lucros.
A educação pública também deve ser da pior qualidade. Aquela idéia maluca de construir escolas de atendimento integral, com médicos, dentistas, atividades profissionalizantes, prática esportiva felizmente já saiu de pauta. Afinal de conta era muito caro. Ficamos livres daqueles insanos, que já morreram. Queriam aplicar todo nosso dinheirinho dos mensalões, lava jato e sangue sugas em educação. Que desperdício! Com a Copa do Mundo e as Olímpíadas nossa lavanderia prosperou muito.
Pode-se até fazer concessões com relação ao lazer. Deixe-a soltar pipas e foguetes, somente se estiver a serviço dos bandidos. Isso pode ser muito lucrativo para essa criança. O tráfico dá a ela a oportunidade que os empresários negam, de participar na divisão das riquezas com seu “trabalho ilícito”.
Mantenha-a em uma comunidade comandada pela bandidagem. Ali ela não terá outra opção: ou adere ou morre. Se aderir, isso será por pouco tempo, porque logo será presa; é mais fácil prender crianças como “bucha de canhão” do que os adultos que as exploram e coagem; ou, então, logo ela será um número nas estatísticas do extermínio. Vez por outra, deixe-a fazer um estágio nas “escolas de infratores”. A convivência com outros adolescentes de mais idade, que praticam infrações mais graves, poderá aperfeiçoá-la e promovê-la a outra categoria na escala do crime. Detalhe: essa “escola” deve estar à margem das normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e os “educadores” devem odiar crianças e estar sempre munidos de palmatórias e cassetetes. Não pode essa escola ser dotada de qualquer proposta pedagógica, porque corre o risco de desviar o adolescente de seu destino criminológico.
Providencie uma poderosa campanha publicitária na mídia para que a opinião pública eleja essa criança seu inimigo público número um. Exiba sempre, nas primeiras páginas dos jornais, toda e qualquer infração praticada por criança ou adolescente, ainda que essa violência a eles atribuída seja uma raridade. Repita, sempre, nos maiores jornais e emissoras de televisão que ela é uma perigosa assassina, responsável por toda a violência existente no país. Nunca admita a efetivação dos preceitos constitucionais que lhes garantem direitos fundamentais que são costumeiramente desrespeitados pela família, pelo Estado e pela sociedade. Nunca diga que ela é vítima da omissão e da ausência de políticas básicas; isso pode ser considerado demagogia e a até acusarem você de defensor dos direitos humanos, o que é um conceito pejorativo no meio dos “humanos”.
Tudo que você proíbe a essas crianças estimule aos outros adolescentes. Deixe que freqüentem boates promíscuas onde podem exercitar suas carências afetivas agredindo os outros e usando drogas. Lá a venda de bebidas alcoólicas é livre para adolescentes abastados. O sexo é livre e sem limites. Nossos filhos precisam aprender a serem “homens” desde cedo. O acesso às drogas é permitido e até estimulado. Deixe que essa criança perceba que existe essa diferença no tratamento entre uns e outros cidadãos que vivem sob a mesma lei. Isso servirá para aumentar as diferenças sociais, o ódio e a frustração de não poder ser tratada com igualdade.
Pronto, você conseguiu, finalmente, criar o seu monstro.
Agora conviva com ele!
O senhor deu um diagnóstico corretíssimo. Como todos sempre fazem, mas qual a solução? Quais seriam as soluções viáveis para esses problemas? Aliais, deixar que os pais exclusivamente cuidem da educação dos filhos, achando que estes pais (alcoólatras, machistas) de maneira voluntária irão transmitir cidadania aos filhos é pura ingenuidade. Então vamos regular ou censurar os meios de comunicação e a cultura de forma que propaguem cidadania? Vamos criar uma cartilha de cidadania para todos os brasileiros ou mesmos palestras semanais como condição para ganhar o bolsa família? Será que uma escola com educação integral que doutrine as crianças a serem cidadãs funcionaria realmente se quando ela chegasse em casa encontrasse o pai bêbado. São questões culturais complexas e só uma Revolução Cultural, nos moldes que Mao Tse Tung implementou na China poderia dar jeito no Brasil. Não se muda a cabeça das pessoas com médicos, campos de futebol, teatros nas comunidades ou água encanada.
Prezado Pedro Carvalho.
Obrigado por sua leitura e comentários. A receita única é educação, educação e educação. Mas acho que se respeitarmos TODOS os direitos das crianças e dos adolescentes eles aprenderam a respeitar os nossos. Muito obrigado.
Não, Sr Siro. Não culpe, por favor, educação, local onde vive, politicas públicas e mídias. Culpe quem decidiu que bater em criança é errado. As pessoas fazem coisas certa se erradas desde bebês. Na primeira vez, você aconselha. Da segunda, você repreende. Da terceira, você não faz mais nada. Acabaram os recursos. Sou nascido e criado em comunidade carente. Vi muta coisa errada desde cedo. E sim, meu pai me bateu muito. Muito. Conto até hoje em reuniões de família e amigos que certa vez, meu pai me bateu numa quinta-feira que as marcas nas minhas costas duraram até a sexta-feira da outra semana. 8 dias marcado. E não virei bandido. Nunca roubei ou matei ninguém. Seus 2% documentados são mérito justamente da mídia. Ou o Sr acredita que se a mídia se importar em noticiar todos os casos terá algum espaço pra desenhos? Na realidade, vou contar o que acontece de fato: Se um menor comete um crime, por que razão se leva ele a uma delegacia? O que acontece se eu apreender um menor tentando roubar minha residência e levá-lo numa delegacia? NADA. Mesmo com eu respondendo essa pergunta de forma leiga, gostaria de sua réplica especialista(Não estou sendo irônico). Foi esse NADA que encorajou as crianças a entrarem pro crime. É esse NADA que as mantém nos seus 2%. Falta de escola? Ano passado vimos uma diretora ser exonerada por fazer um pedido de socorro quando um aluno de Macaé-RJ promoveu uma mini baderna na secretaria. O Sr teria uma formula pra tal situação? Ele foi vítima? A unica vítima é a educação. E não ache que falo da educação do poder público. Não sou da área. Sou cidadão normal. Falo da educação de casa. onde minha mãe conta que, na época dela, se passasse na frente da televisão, meu avô dava uma ‘bordoada’ no ouvido que ela ficava uma semana com a orelha vermelha. Veja Sr Siro, minha mãe não entrou pro crime. Hoje em dia meu avô possui uma filha de 5 anos que não só passa na frente como troca o canal e grita durante momentos em família por atenção. Meu avô? O da ‘bordoada’ na minha mãe? Não faz nada com a minha tia de 5 anos. As palmadas foram limitadas. Um tapinha na mão que outrora foi extremamente educador, hoje é tortura, espancamento e caso de polícia. E eu me vejo nisto., Meu filho tem 10 anos. Nunca bati nele, obvio, moldado às novas regras impostas por pessoas como o Sr. Dia destes meu filho deu um tapa no braço da mãe dele que estalou. Motivo banal. Ah! Mas se fosse ao contrário…
Deixe-me agora tecer elogios ao Sr. Seu texto é bem escrito. O Sr é bem articulado. Lamentável ter usado tais artifícios pra escrever “Como fabricar um bandido”. A sua realidade é bem diferente da que acontece. Prova disso são 3 imagens de fora do Brasil. Eu me pergunto se não seria por motivos de direitos autorias que o Sr as usou. Mas se fosse por isto, não seria mais rico tentar tirar uma foto da nossa realidade?
Com todo o respeito, Sr Siro Darlan, use sua astúcia pra devolver aos pais o controle dos filhos. Até agora, com 31 anos de vida, ainda não tomei conhecimento, na comunidade, de um filho matando os pais com pauladas na cabeça. A Suzane tá aí pra quebrar alguns paradigmas que foram difundidos por pessoas que nunca pisaram numa comunidade e acham que é exclusividade de pobre ser criminoso.
Aproveito pra retificar sua réplica ao amigo de cima: O Sr diz que temos que respeitar TODOS os direitos das crianças pra que elas respeitem os nossos. Concordo em número, gênero e grau. Mas inclua, por favor, os deveres. Pais tem deveres de educar, alimentar, vestir e promover os filhos à vida adulta. Filhos tem DEVERES também. Obedecer os pais é um deles. E arcar com as consequências de desobediências deve ser incentivado por pessoas como o Sr. Se um pai deixa de alimentar um filho, ele comete um crime. Se um filho deixa de obedecer um pai, deve arcar com isso. E a autoridade em cima de uma criança é dos pais. Não do estado. Assim como os adultos não devem ser punidos nos moldes da lei caso façam o citado, os filhos também o devem. Eu não escrevi as leis que vigoram hoje no país. Da mesma forma que os filhos não escrevem as leis dos pais. Nem as punições. Assim vive a lei e ordem. Qualquer coisa fora destes moldes, consegue ‘fabricar um delinquente’.
Tive oportunidade de ficar frente a frente com o Sr por duas vezes na época da escola em palestras. Nas duas não pude ir. Lamento profundamente não ter tido o prazer de conhecê-lo. Tenho certeza absoluta que minhas opiniões não vão mudar as suas. Então dou-lhe o conhecimento que em paralelo, as suas opiniões também não vão mudar as minhas. E nem a de muitos que pensam como eu.
Retire o controle dos pais e cobre do estado. A receita é falha. Retorne o controle dos pais e faça o estado agir em crimes contra a criança. E saiba, acima de tudo, discernir ‘crime’ de ‘educação’. O Sr, por exemplo? Teve os seus ‘direitos’ amplamente atendidos quando criança? Era livre de deveres? Arcou alguma vez com irresponsabilidades? Teve uma infância difícil?
Essas perguntas são sim capciosas. As respostas são ‘sim’ ou ‘não’.
Se não, não conhece a realidade dos fatos pra ter propriedade em manejar isto.
Se sim, és um belo exemplo de que educação enérgica pode fazer com que as pessoas sejam bem sucedidas.
Dia destes, fiz uma mudança e ao final, notei que o lixo deixado era um volume grande. Andei pela comunidade em busca de alguém que fizesse a retirada. Veja o Sr, achei um garoto com um carrinho justamente deixando lixo no ponto de coleta. Fiz o convite e ele aceitou de prontidão. Estava TRABALHANDO. É errado? Deveria estar brincando? Sou criminoso por promover o trabalho infantil?
Sr Siro Darlan, veja mais de perto. Muito mais de perto. Tanto o mundo real quanto o virtual. Fotos arranjadas pra entrar num contexto são extremamente prejudiciais ao conteúdo.
A sua primeira imagem é do garoto que fumava 40 cigarros ao dia. O Sr lembra da história deste menino? Que se os pais não dessem cigarros ele gritava e chorava e esperneava? Tem mais a ver com as minhas colocações do que com as suas. Para atualizações, hoje ele tem 12 anos e não fuma mais. A segunda é deste artigo http://childsoldiersdiscrimination.weebly.com/overview-of-child-soldiers.html que mostra um cenário de guerra. Estamos numa guerra, Sr Siro Darlan? Porque se estamos e por definição, muita gente vai morrer dos dois lados. Da população e do lado das crianças. Se não estamos, a foto usada é obsoleta.
E a terceira é de um artigo que mostra os piores pais do mundo com várias fotos de pais e filhos em situações engraçadas(obviamente, para o contexto, o Sr usou a pior).
Ou seja, as fotos nada tem a ver com o nosso Brasil de favelas e falta de vagas em creches.
Bom, acho que acabei me estendendo… Seria um prazer enorme se o Sr lesse tudo. Reitero que devo ao Sr todo o meu respeito e que ficaria feliz se um dia tivesse a oportunidade de tomarmos um cafezinho, já que resido no Rio de Janeiro, isso não seria de todo impossível.
Um imenso abraço
Thiago Amarante
Parabéns pelas colocações.
Senhor Thiago Amarante. Obrigado por seus comentários. Pensamos diferente. Sou contra usar a violência como ferramenta para educar. Mas respeito suas colocações. Felizmente as pessoas são diferentes e devem ser respeitadas em suas diferenças. Obrigado. Siro Darlan