CIDADANIA NA SENZALA
Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de janeiro e Jairo Vasconcelos Rodrigues Carmo, magistrado aposentado e professor.
Confesso minha perplexidade com o caso Bruno-Eliza-Bruninho. Impossível não imaginar as barbáries do ritual macabro, a selvageria dos algozes contra a fragilidade feminina, maior diante das aflições do filho bebê. Nossa humanidade se rebela: queremos justiça pronta e severa. Por isso, diariamente, fazemos a catarse de execrar os indiciados, aplaudindo o cárcere antecipado. Nesse transe, esquecemos as garantias do devido processo legal, cujos rigores, amiúde, rejeitam as provas do noticiário, posto faltar-lhes, muita vez, um mínimo de racionalidade jurídica.
O processo penal é uma obra de arte. Como pintar um quadro, exige habilidade, técnica e prudência. Apesar do que se diz ou se pensa no afogadilho das emoções, a verdade é que somente o processo judicial, ao fervor do contraditório e da ampla defesa, poderá condenar os culpados.
Em matéria criminal, antecipar condenações pode representar grave e pesaroso equívoco. Exemplos se multiplicam, como o de 1994, em São Paulo, envolvendo os dirigentes da Escola Base, acusados da prática de orgias com crianças do colégio. Daí a presunção de inocência, elevada a princípio constitucional, como meio de exigir o respeito ao devido processo legal. Isto significa, no estágio atual do Direito, que a sociedade deve esperar o advento da sentença condenatória. Paradoxalmente, no caso Eliza-Bruno, já muito antes da conclusão do inquérito policial, as circunstâncias da morte, autores e cúmplices, tudo parece definitivamente resolvido, sem margem para dúvidas ou fatos novos. Até mesmo o Flamengo, ignorando o valor patrimonial do atleta, decidiu descartá-lo liminarmente, pulverizando sua carreira e seu futuro.
Tenho dificuldades em aceitar o acerto dos veredictos midiáticos, substituindo juízes e tribunais. Por vezes temo o clamor popular, enredado pelas evidências, mas à míngua do conforto de prova judiciária, detalhada e contraditada. Com efeito, do inquérito policial ao libelo do Ministério Público, até a decisão dos jurados, percorre-se um universo de tantas incertezas, algumas dessas que subsistem o tempo de viver, incorporando-se à história.
Como membros plenos de uma comunidade política, os cidadãos Bruno, Eliza e seu filho são pessoas com direitos e deveres. O filho, por exemplo, independentemente das iniciativas da mãe, tem o direito personalíssimo, indisponível e imprescritível ao reconhecimento de sua filiação, podendo exercê-lo contra o suposto pai, Bruno, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça (cf., ECA, art. 27). Como cidadão sem pai, embora indiciado pela mãe, um conceito de reconhecimento político impunha dar-lhe pronta e adequada tutela jurídica, a exercer pelo Ministério Público, em ação de investigação de paternidade, nos termos da Lei 8.560/1992. Mais a dizer-se: Eliza com seu filho, a teor do artigo 226, § 4º, da Constituição do Brasil, é uma entidade familiar, os dois a merecer especial proteção do Estado, inclusive aquelas propiciadas pela Lei Maria da Penha.
No plano dos direitos e da democracia, o que sucede é que nossa cidadania ainda transita entre a Casa Grande e a Senzala. Esse é o nosso flagelo social, nossa terrível epidemia. A pretensão de validade das leis e seu conteúdo normativo – isso deve valer porque é do interesse geral – só pode ser avaliada discursivamente. Na prática, valem mais na Casa Grande e muito pouco na Senzala.
Ao menos quanto ao Flamengo, urge corrigir-se a ligeireza das declarações e julgamentos. Vamos todos esperar pela justiça do processo penal, confiando na soberania dos juízes. O momento é de prudência e moderação. Por ora, Bruno é atleta profissional, sendo, nessa qualidade, um bem patrimonial do Clube, de sorte que, até o julgamento final, ninguém de bom senso deve defenestrá-lo. De igual modo, os direitos de Eliza e do filho órfão, e os da própria sociedade, hão de ser perseguidos nas instâncias próprias, pelo Ministério Público e seus eventuais advogados.
Sou convencido de que a Justiça pátria, no tempo oportuno, a todos contemplará com uma sentença certa e definitiva. As dimensões da cidadania exigem um padrão de responsabilidade solidária que torna possível a qualquer pessoa, independentemente de sua origem e condição social, a levar uma vida em igualdade de direitos e “isenta de vergonha”. O conceito de vergonha, aqui, refere-se à vedação de atos discriminatórios ou contrários à dignidade humana, em razão da pobreza, e desta um efeito iníquo, a exclusão jurídica.
Lamentavelmente, a cidadania da tríade Bruno-Eliza-Bruninho jaz na senzala. O exemplo vindo da escravidão ilustra o quanto a sociedade desrespeita seus direitos fundamentais. Realmente, os escravos não eram avaliados com base em valores comuns aos homens livres: o valor deles era meramente mecânico ou instrumental. Eliza, sem formação acadêmica, é “Maria-chuteira”, “amante”, “garota-de-programa”. Nem mãe pode ser. O filho, nessas circunstâncias, deve seguir sem paternidade, como se a horda de parceiros da mãe pudesse anular a identidade do pai. Bruno é útil se e enquanto goleiro; na prisão, nada vale, deixa de ter direitos ou, em caso algum, direitos iguais de tratamento e liberdade. Esses três seres humanos, à vista de suas biografias, na melhor das sinas, são “cidadãos de segunda”; são “servos inválidos” que devem ser desconsiderados. Dito de outro modo, incisivamente: os três podem ser lançados fora porque são pessoas sem valor, logo socialmente mortas.
É isto provavelmente que explica a rapidez do Flamengo em desligar-se de Bruno, negando-lhe o direito que tem ao devido processo legal. Também explica a indiferença do Ministério Público em promover a ação de investigação de paternidade do pequenino Bruno, malgrado o imperativo constitucional que lhe confere, em regime de absoluta prioridade, direito à convivência familiar, ele a salvo de toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão. Tocante à Eliza, sabe-se que lutou: correu delegacias e juizados, reivindicou, protestou, mas tudo em vão. Nossa democracia e suas instituições têm enorme dificuldade de ver as pessoas mais pobres, preferindo sabê-las invisíveis no limbo das senzalas.
A melhor solução, porém, é avançar em busca da Justiça estatal, exigindo do Ministério Público e do Poder Judiciário que respeitem os direitos dos moradores da Senzala, máxime aqueles oriundos da legalidade constitucional, como se vivessem na Casa Grande, todos, enfim, membros de uma dada República Brasil que aspira a construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Sr. Dr. Meretissímo, leiga sou, mas, acompanho este caso desde o ínicio, pois sou Flamenguista de coração e fã de Bruno, o que não consigo entender é: a omissão de Bruno, caso isso tenha ocorrido, faria dele tb um assassino?.. ou se o sr. poder me tirar a dúvida se neste caso está tendo (como dizem) até mesmo em Tv, abuso de poder neste caso, pois os holofotes só o que fizeram foi condenar Bruno, pois que algumas provas (fralda a exemplo) teria sido forjada… o sangue tb não poderia ter sido?.. e li na folha de São Paulo, pela internet, que os delegados do caso, responderiam por estes abusos.. grata, sua fã, como Desembargador, sempre ouço o Sr. na Globo RJ.
Parabéns!
Cara Ana Carla.
Acredito estar havendo muita precipitação e pre julgamentos indevidos. É preciso esperar a ação da justiça para verificar se há provas e se há culpa ou não. Obrigado pelo seu comentário. Siro Darlan
Eu que agradeço o seu esclarecimento.
A sua opinião, neste caso para mim é muito importante, pois sinceramente, fiquei com medo de mim mesma, estar sendo tão ingenua a ponto de não aceitar uma pessoa já acusada (delegados e mídia), e eu por ser admiradora desta pessoa, não querer ver o que estaria a minha frente, muito obrigada mesmo.
Que DEUS, esteja sempre a seu lado, para que o Sr. possa sempre defender as crianças de nosso Brasil.
Parabéns pelo trabalho, sempre te admirei, mas fiquei muito desapontado com a notícia que o srº é um dos notáveis que pediram a demissão por justa causa do Bruno, isso é verdade? chutar cachorro morto? estou torcendo para que essa noticia não seja verdadeira!!!
Não o decepcionei. Fui o único voto vencido sob o argumento que o julgamento cabe à Justiça e não podemos pré julgar o atleta, que acredito será absolvido por fragilidade de provas. Aguardemos. Obrigado. Siro Darlan
Venho por meio dessa,pedir uma orientação,sei que não é a página certa para este tipo de comentário,mas…estou muito preocupada com o meu sobrinho.Os genitores dele o abandonaram,a mãe o mandou para casa do pai que mandou para uma outra residência.Ele está há 6 anos fora da escola,fui ao conselho tutelar e o pai foi chamado,mas disse que não quer saber de nada,por favor me ajude e desculpe-me.
Olá!, chamo-me Sara estudo Filosofia e adorei imenso do teu blogue! Muito linda muito bem!
Adequa-se plenamente com tudo aquilo que aqui observei.Hoje sempre há tanto que escrever nos blogs!Nada nada mais intrigante do que deixar a nossa marca na net!
Até amanhã 🙂