ESPECIAL XXXVI: O Estado de coisa institucional – por Siro Darlan

Fotos: DivulgaçãoCOLUNISTASDIREITOS HUMANOSESPECIALJUSTIÇAPOLÍTICAESPECIAL XXXVI: O Estado de coisa institucional – por Siro Darlan  MAZOLA4 horas ago 0  8 min read  21996

Por Siro Darlan –

Série Presídios XXXVI.

O Supremo Tribunal Federal, 21 anos depois volta ao tema suscitado pelo Psol quando ajuizou uma arguição de descumprimento de preceito fundamental, a ADPF 347, para enfrentar o descalabro das condições carcerárias. O país trata os seus presos de maneira desumana, criminosa e cruel, como estamos tratando nessa série ao dar voz aos que cumprem pena privativa de liberdade nessas condições tão adversas.

Na série temos repetido que o cidadão condenado perde a liberdade, mas tem o direito de manter a sua dignidade e todos os direitos a ela inerentes. O Estado passa a ter a custódia da liberdade, mas, necessariamente, tem que prover todas as condições para que o custodiado tenha uma vida digna. O preso não pode virar um objeto nas mãos do Estado. Ele continua sendo sujeito de direitos, na plenitude possível, dentro do presídio.

Com a terceira maior população carcerária do mundo, o Brasil terá que definir nos próximos meses como realocar cerca de um quarto dos seus mais de 650 mil detentos. Segundo levantamento feito com base nos dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), o total ultrapassa em 165.754 pessoas a quantidade de vagas hoje disponível nos presídios do país.

Os dados mais recentes do Ministério da Justiça mostram que esse contingente está em 1.458 unidades prisionais, o que significa que 25% da população carcerária brasileira está além da capacidade do sistema. São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro são, respectivamente, os estados que mais registram superlotação.

Os dados apontam ainda que quase 30% desse total ainda não tem condenação, portanto são tecnicamente inocentes considerando o princípio da presunção de inocência, segundo o qual só são considerados culpados com a condenação transitada em julgado. Dos 650 mil em celas, 180,1 mil ainda não foram julgados.

Com o retorno do julgamento e a decisão do plenário do Supremo Tribunal reconhecendo a óbvia e permanente violação aos direitos fundamentais dos cidadãos recolhidos aos presídios e determinando uma intervenção do governo federal, faz-se imperiosa, para mitigar a situação –o que é louvável–, a pergunta que não quer calar: essa decisão terá efetividade?

A Lei de Execução Penal, a Lei de Execução Penal, nº 7.210, de 11 de julho de 1984, que já está em vigor a 40 anos, até hoje é letra morta e nenhum governo foi responsabilizado por isso. Se a lei existente fosse simplesmente obedecida, já iria operar grandes modificações nas medievais prisões brasileiras. Embora não seja o ideal, já consta, expressamente, a necessidade legal e imperiosa de dar assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. Todas elas textualmente especificadas no diploma legal. Basta respeitar a lei enquanto se espera o cumprimento da importante decisão da Corte Suprema. Será validada essa decisão da Suprema Corte?

O responsável pelas condições sub-humanas dos presos dentro do sistema penitenciário é, em última análise, o Poder Executivo. Mas o responsável pela superlotação é exatamente o Poder Judiciário. Portanto, enquanto não houve uma mudança de interpretação da lei segundo os interesses sociais e coletivos, dentro do princípio da dignidade da pessoa humana, continuaremos prendendo autores de delitos de pequeno porte, sem qualquer periculosidade para o convívio social com o mesmo viés escravocrata de prender pretos e pobres.

No ranking de população carcerária, o Brasil fica atrás apenas da China e dos Estados Unidos. Os ministros reiteraram que há um “estado de coisas inconstitucional” e uma “violação massiva de direitos fundamentais dos presos”, como eles reafirmam nos depoimentos prestados nessa série da Tribuna de Imprensa Livre.

De acordo com dados oficiais da Senappen, a cadeia em que a superlotação é maior comporta quase o triplo que sua estrutura consegue absorver: o Presídio Tiago Teles de Castro Domingues, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, tem 640 vagas e 1.855 presos, 190% acima da capacidade máxima. Isso caracteriza pena de tortura permanente. E os dados sequer comentam a situação revoltante da Prisão de Água Santa que é subterrânea, como as masmorras medievais.

O ranking é seguido pelo Presídio Inspetor José Martinho Drummond, em Minas Gerais, com 2.554 detentos para 1.047 vagas — 143% além da capacidade.

As duas prisões que ocupam a terceira e a quarta posição da lista ficam no Distrito Federal. As penitenciárias I e II do Complexo da Papuda têm, respectivamente, 132% e 127% de detentos além das vagas disponíveis.

Os presídios de São Paulo, que concentram a maior população carcerária do país, mantêm 43,7 mil pessoas além da capacidade. São 195,7 mil para 152 mil vagas, o que representa 29% acima do limite. Três cadeias do estado aparecem entre as principais superlotações carcerárias. Uma delas, a Penitenciária de Guareí II, chega a uma taxa de excedentes de 97%.

Em 2015 o STF já havia reconhecido a existência de violações em massa de direitos humanos no sistema penitenciário brasileiro. A decisão se baseou em um pedido do PSOL, que recorreu à Corte Suprema para resolver a situação.

“As prisões brasileiras são, em geral, verdadeiros infernos dantescos, com celas superlotadas, imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos higiênicos básicos. Homicídios, espancamentos, tortura e violência sexual contra os presos são frequentes, praticadas por outros detentos ou por agentes do próprio Estado”, descreveu a ação apresentada pela sigla.

Na época, o Supremo decidiu atender em parte o pedido e, entre outras medidas, determinou a realização das chamadas audiências de custódia em que é analisada a regularidade das prisões.

O novo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, decidiu, oito anos depois, a análise do mérito desse caso como primeiro julgamento da sua gestão. Na ocasião, afirmou esperar que as medidas possam “melhorar minimamente” as “condições degradantes” das prisões.

Afirmou: “Não há uma solução perfeita. Nem creio que com essa decisão se consigam resolver todos os problemas. Mas espero que seja um passo relevante para melhorar minimamente, que seja, as condições degradantes do sistema prisional brasileiro, em respeito às pessoas que estão lá, privadas de liberdade, mas não de dignidade”.

O governo federal terá seis meses para apresentar um plano, que precisará ser homologado pelo STF. Após essa etapa, estados e o Distrito Federal terão mais seis meses para entregarem seus planejamentos.

Esses planos terão que conter medidas que superem, em três anos, o cenário atual. Também deverão trazer indicadores para acompanhar sua implementação. Desde que a ação foi proposta há 21 anos, com mais os cinco anos definidos na decisão da Excelsa Corte, muitas vidas de jovens e negros pobres já foram ceifadas, além de milhares foram retiradas de circulação para o cumprimento de uma pena cruel e degradante. É a desigualdade dentro do que já é desigual, injusto e cruel.

Eis a relação das dez cadeias mais superlotadas do Brasil:

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SIRO DARLAN – Advogado e Jornalista; Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Ex-juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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