O direito à moradia – por Siro Darlan

Há mais imóveis desocupados do que déficit de moradia no país. (Foto: Giorgia Prates / Brasil de Fato)COLUNISTASDESTAQUESPOLÍTICAO direito à moradia – por Siro Darlan  MAZOLA9 horas ago 0  12 min read  22245

Por Siro Darlan –

Direito à moradia é um direito social reconhecido a todos os brasileiros no âmbito dos Direitos e Garantias Fundamentais declarados na Constituição Federal.

É um direito de conteúdo amplo, não significando somente uma casa para morar. A proteção do direito à moradia envolve vários aspectos: segurança na posse, disponibilidade de serviços, equipamentos e infraestrutura, disponibilidade de moradia a preços acessíveis, habitabilidade, acessibilidade, localização e adequação cultural.

Já o direito de propriedade é o direito de usar, fruir, dispor de um bem e ainda reivindicar esse bem. É também um direito fundamental, previsto na nossa Constituição Federal. Contudo, não é um direito absoluto. Nossa constituição protege a propriedade que cumpre sua função social.

Direito à moradia, como se vê, não se confunde com direito de propriedade. Por um lado, não restam dúvidas de que a propriedade de um imóvel que constitui moradia de uma família garante-lhe a proteção contra atos de terceiros. Contudo, a proteção do direito à moradia não depende da propriedade. Em alguns casos, a moradia pode e deve ser privilegiada em detrimento do direito de propriedade. Além disso, o direito à moradia pode ser exercido de outras formas, como por meio do aluguel de um imóvel.

Outro dia, saiu na mídia de forma espetaculosa, mas como se fosse a coisa mais natural do mundo que a Prefeitura do Rio havia destruído, com sua força tarefa, uma residência da Rocinha. Para justificar o mal feito, a mídia, instrumento fundamental para justificar a perseguição dos pobres informou (ou desinformou) que a moradia era de um traficante, que seria o “dono do morro”. Essa desinformação é fundamental para atrair a aprovação da opinião pública, que não avalia que a violência do Estado que é aprovada ou tolerada pode atingir qualquer um, inclusive os que agora aprovam essa modalidade de uso do direito para perseguir “inimigos”.

Numa tentativa de conter a violência que grassa por todos os poros da população esquecida pela cidadania, o advogado intenta no judiciário impedir que a destruição do imóvel seja completa, afinal isso jamais aconteceria em imóvel do andar de cima da zona sul do Rio de Janeiro. Ninguém entraria no domicílio sem mandado, não destruiriam sem uma intimação previa. Mas o judiciário cumpriu o seu papel, e o juiz plantonista, de plantão na defesa do statuo quo, negou a liminar e deu carta branca para os violadores, exigindo do Requerente: “Por outro lado, o Registro de Imóvel 2022, cujo documento foi elaborado pela UPMMR e que não tem o condão de titularizar a propriedade em nome do autor, descreve um imóvel situado no Caminho do Terreirão, nº 343 B, Rocinha, Rio de Janeiro, possuindo 3 andares com 3 suítes. No entanto, não há comprovação por RGI da propriedade do referido imóvel”. Ora, Senhor Juiz, a comunidade da Rocinha, assim como a demais 900 comunidades do Rio de Janeiro, não são oficialmente reconhecidas pelos Registros de Imóveis, que nunca se dignaram a regularizar a posse das terras dos Quilombos Urbanos. O que vale nessas comunidades, é o fio do bigode, que é representado pelos UPMMR. Esse é o documento que dão aos moradores o título de morador dessa comunidade. Não reconhecer esse documento como válido é negar as regras e costumes comunitárias.

Essa tem sido a regra do poder público que não trata os moradores das comunidades como cidadãos com direitos fundamentais, salvo quando são procurados em períodos eleitorais, ou quando são violentados em seus direitos mais íntimos invadindo seus domicílios sem mandados judiciais, com violência homologada por algumas decisões judiciais, que entendem que morador de comunidade encontra-se em estado de ilicitude permanente, por isso admitem que a polícia invada suas casas à procura de fatos criminosos, podendo encontrar ou fabricar.

Questão de Português sobre Charges e Tirinhas | Planejativo

A situação fundiária no Brasil é um estado de ameaça permanente à integridade física daqueles que lutam pela implementação da Reforma Agrária e a ocupação legal do solo urbano especulativo. A FIST – Frente Internacional dos Sem teto promove assistência jurídica e social ao povo das ruas e procura espaço ocioso para ser ocupado pelo povo em busca do direito à moradia. A ABRAPO – Associação Brasileira de Advogados do Povo oferece assistência jurídica ao povo do campo que habita áreas desocupadas na busca do sustento de sua família e da produção da agricultura familiar.

Assim como os brasileiros desalojados de seus lares, os advogados que atuam nessas frentes pro bono são criminalizados pelo poder burguês. Participei com a advogada mineira Cristina Paiva de um debate sobre Encarceramento no Brasil e a Criminalização dos Movimentos Sociais, onde ouvimos depoimentos de diversas regiões do Brasil queixando-se da violência das polícias e do mau atendimento do judiciário aos que trabalham na defesa do povo oprimido nas cidades e nos campos.

O super encarceramento, o estado de tortura permanente do povo pobre e preto, que vivem nas favelas e periferias das grandes cidades, só não é pior que o estado de coisa inconstitucional que marca a rotina dos cárceres brasileiros. Que resposta nos dão os poderes constituídos, além do opróbrio da ausência de políticas públicas e o tratamento animalesco para os encarcerados?

A Resolução 510 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em 26 de junho de 2023, traz importantes medidas para assegurar soluções aos conflitos fundiários urbanos e rurais. Fruto de reivindicação popular e das incidências de organizações – dentre elas a Terra de Direitos e Campanha Despejo Zero no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional 828, que trata da suspensão de remoções e despejos durante a pandemia – a Resolução 510 traz uma nova postura do Judiciário na mediação e solução de conflitos. Como mudança regulatória, é um importante passo.

A Resolução nº 510/2023 do CNJ regulamenta a criação de uma Comissão Nacional de Soluções Fundiárias no Conselho Nacional de Justiça, bem como, localmente, de Comissões Regionais de Soluções Fundiárias pelos tribunais da Justiça Estadual e Federal. As comissões locais são caracterizadas como regionais porque podem abranger mais de um Estado (por ex. no caso de estados de menor tamanho) ou serem constituídas por parceria entre a justiça federal e estadual da mesma região.

A Resolução também institui diretrizes para a realização de visitas técnicas nas áreas objeto de litígio possessório. Ou seja, determina que as comissões regionais, ao atuar nos casos, realizem essas visitas como primeira medida, bem como orienta como as visitas devem ocorrer e o que deve ser observado, por exemplo o número de famílias, idosos, crianças, gestantes, etc.

A Resolução estabelece também protocolos para o tratamento das ações que envolvam despejos ou reintegrações de posse em imóveis de moradia coletiva ou de área produtiva de populações vulneráveis. Ou seja, antes da expedição de mandado de reintegração de posse coletivo, é necessária a realização de audiência com os ocupantes, Poder Público, Ministério Público e Defensoria Pública, etc., nos termos determinados na resolução, para resguardo dos direitos fundamentais.

Charge do Jota Camelo. (Facebook)

No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que trata da suspensão dos despejos e remoções enquanto durar os efeitos da pandemia da Covid-19 e da crise social, o plenário do Supremo Tribunal Federal acompanhou o voto do ministro Roberto Barroso (relator da ação) e determinou que:

• Os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais deverão instalar, imediatamente, comissões de conflitos fundiários que possam servir de apoio operacional aos juízes e, principalmente nesse primeiro momento, elaborar a estratégia de retomada da execução de decisões suspensas pela presente ação, de maneira gradual e escalonada;

• Devem ser realizadas inspeções judiciais e audiências de mediação pelas comissões de conflitos fundiários, como etapa prévia e necessária às ordens de desocupação coletiva, inclusive em relação àquelas cujos mandados já tenham sido expedidos. As audiências devem contar com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública nos locais em que esta estiver estruturada, bem como, quando for o caso, dos órgãos responsáveis pela política agrária e urbana da União, Estados, Distrito Federal e Municípios onde se situe a área do litígio, nos termos do art. 565 do Código de Processo Civil e do art. 2º, § 4º, da Lei nº 14.216/2021;

• As medidas administrativas que possam resultar em remoções coletivas de pessoas vulneráveis devem (i) ser realizadas mediante a ciência prévia e oitiva dos representantes das comunidades afetadas; (ii) ser antecedidas de prazo mínimo razoável para a desocupação pela população envolvida; (iii) garantir o encaminhamento das pessoas em situação de vulnerabilidade social para abrigos públicos (ou local com condições dignas) ou adotar outra medida eficaz para resguardar o direito à moradia, vedando-se, em qualquer caso, a separação de membros de uma mesma família.

• A decisão ocorreu em resposta ao pedido formulado, em outubro de 2022, pela Terra de Direitos e demais movimentos e organizações articuladas na Campanha Despejo Zero, em que foi solicitada a prorrogação da suspensão das remoções e a criação de instâncias permanentes no Poder Judiciário voltadas à mediação dos conflitos possessórios coletivos, garantindo a realização de visitas técnicas e audiências de mediação, dentre outros.

• Tanto no pedido quanto na decisão do ministro Barroso, o modelo de referência é a Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, atualmente Comissão de Soluções Fundiárias – importante iniciativa instituída pelo TJ-PR em 2019.

Através da Resolução nº 510, portanto, o Conselho Nacional de Justiça regulamenta as Comissões cuja criação havia sido determinada na ADPF.  Também estabelece seu funcionamento de forma permanente e dá importantes diretrizes e regras para atuação dessas Comissões e do próprio CNJ nos casos de conflitos possessórios envolvendo imóveis de moradia coletiva ou de área produtiva de populações vulneráveis.

A favela do Morro da Coroa, com o Cristo Redentor ao fundo. (Foto: Mauro Pimentel/AFP)

 Há vários avanços importantes, que devem ser observados e cobrados:

• Passa a ser obrigatório que os tribunais contem com órgãos especializados no tema para atender e mediar os casos de conflitos possessórios coletivos, de moradia ou área produtiva de populações vulneráveis. A ligação com a presidência do tribunal pode permitir maior capacidade de interlocução com representantes dos demais poderes.

• As comissões de soluções fundiárias passam a integrar as estruturas dos tribunais de forma permanente. Não se trata, portanto, de iniciativa provisória, nem restrita aos casos que estavam suspensos pela pandemia, mas sim para todos os casos.

• Os casos que serão acompanhados podem estar em qualquer estágio: pré-processual, com ordem de reintegração de posse vigente, trânsito em julgado, etc.

• Há uma padronização mínima das comissões e como devem atuar. Antes da resolução, os tribunais estavam atendendo (ou não) à determinação do STF consoante apenas critérios próprios.

• O mote da Resolução do CNJ são as soluções fundiárias nos conflitos possessórios, com a garantia dos direitos fundamentais de populações vulnerabilizadas. Portanto, não se trata de iniciativa voltada a meramente cumprir reintegrações de posse, como outras já propostas anteriormente. Para isso, o fluxo de atuação definido é fundamental, primeiramente com visitas técnicas e depois audiências de mediação. É essencial que a mediação busque soluções garantidoras de direitos e que os órgãos responsáveis pelas políticas públicas apresentem estas soluções – esse é o principal desafio e, para isso, a pressão dos movimentos e organizações da sociedade civil é muito importante.

• Outro avanço significativo é a determinação de que, nos casos levados a elas, as Comissões realizem visitas técnicas nas áreas. Pelas visitas técnicas, as(os) magistradas(os) podem conhecer a realidade das comunidades e o impacto de eventual ordem de remoção sobre a vida das famílias que ali residem e/ou produzem. Essa medida é importante para diminuir o distanciamento existente entre o Judiciário e a realidade das comunidades – “pisar no barro” ensina, dentre outros, sobre os direitos básicos negados às famílias pelo Estado e a potência da organização coletiva comunitária.

• As comissões deverão conduzir sessões de mediação, propondo soluções, em diálogo com os órgãos responsáveis pelas políticas públicas.

• Mesmo nos casos em que, eventualmente, não for possível a permanência das famílias, deverá ser organizada audiência pública com a participação dos órgãos públicos, para observância da decisão da ADPF 828 e da Resolução nº 10/2018 do CNDH, para resguardar os direitos das famílias afetadas antes da expedição de mandado de reintegração de posse coletivo.

• Passa a existir um espaço institucional de caráter nacional, no Poder Judiciário, capaz de desenvolver protocolos nacionais, auxiliar em casos emblemáticos e propor melhorias no tratamento judiciário aos conflitos coletivos por terra e moradia, com interlocução com órgãos públicos e sociedade civil. Trata-se da agora criada Comissão Nacional de Soluções Fundiárias. Há anos, aliás, a sociedade civil reivindicava a volta de algum espaço de caráter nacional no Poder Judiciário, avançando sobre o que foi, por exemplo, o extinto Fórum de Assuntos Fundiários do CNJ.

 Há muitos desafios para que os avanços regulatórios trazidos pela resolução saiam do papel e se efetivem. Porém, o conteúdo da resolução traz importante instrumento para a reivindicação dos movimentos e organizações sociais junto aos tribunais, para que a atuação destes seja comprometida com as garantias processuais e os direitos humanos das populações vulnerabilizadas.

SIRO DARLAN – Advogado e Jornalista; Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Ex-juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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